segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Memórias da plantação. Episódios do racismo cotidiano. Grada Kilomba.

Memórias da plantação. Episódios do racismo cotidiano, de Grada Kilomba foi o livro mais vendido na FLIP - 2019, pela livraria da Travessa, a livraria oficial do maior evento literário brasileiro. Foram 648 livros vendidos. O livro demorou dez anos para chegar ao Brasil. Originalmente escrito em inglês, ele foi lançado em Berlim, em 2008. No Brasil ele foi lançado pela Editora de Livros Cobogó. O livro é a sua tese de doutoramento pela Freie Universität Berlim, a Universidade criada por Berlim Ocidental, após a divisão da cidade nas suas duas partes.
O livo da Grada Kilomba, da editora Cobogó, R.J. - 2019.

Grada nasceu em Lisboa, com raízes em Angola, São Tomé e Príncipe. Em Lisboa estudou psicologia e psicanálise. Atualmente mora em Berlim, tendo sido professora no Departamento de Gênero da famosa Humboldt Universität, a histórica e laureada universidade de Berlim, que conta com 29 prêmios Nobel em seus quadros. Na orelha da contracapa lemos mais sobre Grada. "Na esteira de Frantz Fanon e bell hooks, a autora reflete sobre memória, raça, gênero, pós-colonialismo, e sua obra estende-se a performance, encenação, instalação e vídeo. Kilomba cria intencionalmente um espaço híbrido entre as linguagens acadêmica e artística, dando voz, corpo e imagem aos seus próprios textos". O seu espaço de apresentação é o mundo todo.

O título do livro Memórias da plantação. Episódios do racismo cotidiano nos dá as primeiras pistas sobre os temas abordados. Talvez mais o subtítulo do que o próprio título, a não ser que mantenhamos o título no original inglês, plantations. A tradutora do livro, Jess Oliveira, em nota de rodapé, nos dá a definição de Plantation - "plantação em português, foi um sistema de exploração colonial utilizado entre os séculos XV e XIX, principalmente nas colônias europeias nas Américas, que consistia em quatro características principais: grandes latifúndios, monocultura, trabalho escravizado e exportação para a metrópole. Esse sistema criava ainda uma estrutura social de dominação centrada na figura do proprietário do latifúndio, o senhor, que controlava tudo e todas/os ao seu redor". Dá para perceber que não é muito diferente do agronegócio que hoje domina a agricultura brasileira.

Bem, agora já está claro, o tema do livro se compõe de duas categorias fundamentais: o colonialismo e o racismo, absolutamente indissociáveis. O subtítulo nos leva às cenas do racismo cotidiano. Cenas essas que tem origem num passado, que insiste em permanecer. São os depoimentos de duas mulheres negras, que vivem na Alemanha, Kathleen e Alícia, uma com ascendência estadunidense e outra, afro alemã. Elas foram as escolhidas, entre outras, pela riqueza de seus depoimentos. Grada faz a análise sob a luz da psicanálise. A tese mereceu, da exigente universidade alemã, um raro Summa cum Laude.

A edição brasileira ganhou uma carta de apresentação extremamente significativa. Grada conta um pouco de sua história e depois versa sobre as categorias básicas com as quais ela trabalhou no livro. Confesso que foi pela primeira vez que me deparei para refletir sobre a palavra sujeito na perspectiva de que, em nossa língua, ela não tem a forma feminina. Será que é uma alusão à impossibilidade de as mulheres se tornares sujeitos? Eita patriarcalismo. 

A introdução vale o livro. Ela tem, como frase em epígrafe o seguinte pequeno poema, pelo qual Grada mostra a sua preferência.

Por que escrevo?
Porque eu tenho de
Porque minha voz, em todos seus dialetos, 
tem sido calada por muito tempo.

Uma bela razão para escrever. No primeiro capítulo, A máscara, ela fala da "escrava Anastácia", de sua máscara, mais precisamente. A máscara a impedia de comer a cana de açúcar e os grãos de cacau, "mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tortura. Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento das/os chamadas/os "Outras/os": Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?  Seria a máscara uma espécie de "Língua sem partido"?

Como não é tão extenso, tomo do próprio livro, de sua introdução, uma espécie de resenha: "O capítulo 1, A Máscara: colonialismo, Memória, Trauma e Descolonização,começa com a descrição de um instrumento colonial, a máscara, como um símbolo das políticas coloniais e de medidas brancas sádicas para silenciar a voz do sujeito negro durante a escravização: Por que a boca do sujeito negro deve ser amarrada? E o que o sujeito negro teria de ouvir? Esse capítulo aborda não apenas questões relacionadas à memória, ao trauma e à fala, mas também à construção da negritude como "Outra".

O capítulo 2, Quem pode falar?: Falando no Centro, Descolonizando o Conhecimento, discute questões similares no contexto acadêmico ou de erudição em geral: Quem pode falar? Quem pode produzir conhecimento? E o conhecimento de quem é reconhecido como tal? Neste capítulo, examino o colonialismo na academia e a descolonização do conhecimento. Em outras palavras, estou preocupada aqui com a autoridade racial e com a produção de conhecimento: O que acontece quando nós falamos no centro?

O capítulo 3,  Dizendo o indizível: Definindo o racismo.  Como se deveria falar sobre o que tem sido silenciado? Aqui, começo analisando o déficit teórico acerca do racismo e do racismo cotidiano e examino o que para mim é a metodologia adequada para falar sobre a realidade experienciada do racismo cotidiano de acordo com relatos de duas mulheres da Diáspora Africana: Alícia, uma mulher afro-alemã, e Kathleen, uma mulher afro-estadunidense que vive na Alemanha. Ambas narram suas experiências de racismo cotidiano a partir de suas biografias pessoais.

O capítulo 4, Racismo genderizado: "(...) Você gostaria de limpar nossa casa?" - Conectando raça e Gênero, é uma abordagem genderizada do racismo. Aqui, examino a interseção entre "raça" e gênero, bem como o fracasso do feminismo ocidental de se aproximar da realidade de mulheres negras no tocante ao racismo genderizado. Ademais, apresento os objetivos do feminismo negro.

Os capítulos seguintes constituem o verdadeiro centro deste trabalho. Aqui, as entrevistas com Alícia e Kathleen são analisadas em detalhes na forma de episódios e divididos nos seguintes capítulos: Capítulo 5: Políticas Espaciais; Capítulo 6: Políticas do Cabelo; Capítulo 7: Políticas Sexuais; Capítulo 8: Políticas da Pele; Capítulo 9: A palavra N (Neger) e o trauma; Capítulo 10: Segregação e contágio racial; Capítulo 12: Suicídio; Capítulo 13: Cura e Transformação. (Ao todo são examinadas 28 situações desse racismo cotidiano).

O livro conclui com o Capítulo 14, Descolonizando o Eu, no qual reviso e teorizo os tópicos mais importantes que vieram á tona neste livro, e também como possíveis estratégias de descolonização. Deixo as duas últimas frases: ... "Somos eu, somos sujeito, somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras/es e autoridade da nossa própria realidade. Assim regresso ao início deste livro: torna-mo-nos sujeito.

Para terminar, mania de professor. Leitura obrigatória, como tarefa de humanização. Tem ainda seis páginas de referências bibliográficas sobre os temas abordados.


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