quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Macunaíma. Uma rapsódia de Mário de Andrade.

Macunaíma - o heroi sem nenhum caráter não é um livro fácil de ser lido. Para isso nos faltam, essencialmente, elementos culturais ligados a cultura indígena, as suas crenças e lendas. Isso contrasta com a facilidade com a qual o livro foi escrito, uma brincadeira de férias. "É um livro de férias escrito no meio de mangas abacaxis e cigarras de Araraquara, um brinquedo. Entre alusões sem malvadeza ou sequência desfatiguei o espírito nesse capoeirão da fantasia onde a gente não escuta as preocupações os temores, os sustos da ciência ou da realidade - apitos dos polícias, breques por engraxar. Porém imagino que como todos os outros o meu brinquedo foi útil".  Coisa de uma semana.
Li esta edição de Macunaíma, da Coleção Folha. Tem uma preciosidade ao final.


Ao longo de minha vida aprendi uma lição definitiva. A aprendi com Alberto Manguel, em Uma história da leitura. Diz assim: "Parece que mesmo para ler no nível mais superficial o leitor precisa de informações sobre a criação do texto, o pano de fundo histórico, o vocabulário especializado e até sobre a mais misteriosa das coisas, o que Santo Tomás de Aquino chamava  de Quem auctor intendit, a intenção do autor". Página 107. O que deveria ser um bom prefácio para um livro? Ou então uma resenha? Creio que seria exatamente isso.
O escritor e folclorista Mário de Andrade. Captando um Brasil em formação, em busca de identidade.


Mário de Andrade, já datando-o e situando-o, nasceu em 1893 e morreu em 1945. A primeira edição do livro apareceu em 1928. O Brasil de então vivia uma grande agitação e efervescência em busca de uma afirmação e identidade. Neste período ocorreu a famosa semana da arte moderna de 1922, a revolta dos tenentes, no mesmo ano, a revolta paulista de 1924 e a Coluna Prestes e, mais tarde, a revolução de 1930. De uma forma ou de outra, Macunaíma representa um pouco de tudo isso.

A principal característica de Macunaíma está anunciada no subtítulo do livro, - o heroi sem nenhum caráter. Mário explica o significado da palavra caráter, um sentido próprio, obviamente. "E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal". Macunaíma é o povo brasileiro em busca de sua identidade, em formação, por isso "o brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional". Ele está em formação, em mistura. "Macunaíma vinha com os dois manos para São Paulo". No caminho tomou um banho num lago de água encantada e "quando o heroi saiu do banho estava branco loiro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tupinambás". Quanto ao mano Maanape, quando este se foi lavar "conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa". Depois conclui:
Macunaíma no cinema. Macunaíma é Grande otelo. A imaginação ganhou imagens.


"Estava lindíssimo no Sol da lapa os três manos um loiro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e nus". Estão aí as três raças formadoras do povo brasileiro. Este será o grande tema da literatura e da ciência já na década de 1930, a começar com Gilberto Freyre e o seu Casa-Grande&Senzala de 1933 e que mais tarde terá a sua forma consagrada por Jorge Amado em Tenda dos Milagres, "e há de nascer, de crescer e de se misturar... Quanto mais misturado, melhor".

Mas quem era mesmo Macunaíma para Mário de Andrade? Mário responde: "E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei para vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba dessas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, heroi de nossa gente". Mais algumas coisas, agora sobre o livro.
Mário de Andrade está no meio dessa turma, a turma da semana de arte moderna. 1922.


"Este livro afinal não passa duma antologia do folclore brasileiro" e "Amar, verbo intransitivo + clã = Macunaíma". Ou ainda: "Contar a embrulhada geográfica proposital de fauna e flora". A explicação dada quanto ao emprego do estilo também ajuda a entender o livro: "empreguei essa fala simples tão sonorizada, música mesmo, por causa das repetições, que é costume dos livros religiosos e dos contos estagnados  no rapsodismo popular". Fala para justificar o emprego de pornografia, por ela existir nas lendas indígenas. Se existe pornografia, ela, ao menos, para os nossos dias, é bem leve. Mas quero ficar com a palavra rapsódia. Qual é a sua principal característica? Vejamos uma definição, buscada no Aurélio:

"Cada um dos livros de Homero. Trecho de uma composição poética. Entre os gregos, fragmentos  de poemas épicos cantados pelo rapsodo (cantor ambulante de rapsódias). Fantasia  instrumental que utiliza temas e processos de composição improvisada tirados de cantos tradicionais e populares". Assim Macunaíma pode ser considerada uma rapsódia das lendas indígenas. Ao rapsodo tudo é permitido inventar e contar e do jeito que quiser. Não precisa se preocupar com o tempo, com o espaço, com a vida ou com a morte.
Compreender o tempo. Neste livro tem um capítulo para Mário de Andrade.


Isso permite morrer e ressuscitar, estar em lugares distantes num único dia, se transformar, contar casos, citar ditos populares, mesmo que ingênuos ou provocar adivinhações como esta, da página 111, só para ilustrar: O que é:
Mano, vamos fazer
Aquilo que Deus consente:
Ajuntar pelo com pelo,
Deixar o pelado dentro.
Capa da primeira edição de Macunaíma. São Paulo - 1928.


Dois capítulos me chamaram mais a atenção: o de número sete, Macumba, uma elegia dionisíaca de tempos gregos antes da racionalidade que ainda sobreviviam no terreiro de tia Ciata e a famosa carta pras icamiabas, uma carta do Imperator Macunaíma para as mulheres de São Paulo. Mais fina ironia do que essa é impossível. Uma observação final retirada do segundo prefácio: "Nas épocas de transição social como a de agora é duro o compromisso com o que tem de vir e quase ninguém não sabe". Página 194. Macunaíma era grande, quase um gigante, mas a cabeça era pequena. Ai, Que preguiça!

Mas antes que a preguiça tome conta, digo ainda, que Macunaíma adorava "brincar", se espantava com a máquina e fazia confusão entre o homem e a máquina, gostava de cachaça, brigava com o gigante, mostrava ingenuidade ao negociar e ser trapaceado pelo turco e se apavorava diante da "pouca saúde e da muita saúva", os males de seu país.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.