domingo, 7 de maio de 2017

Uma História do Samba. As origens. Lira Neto.

Ler um livro do Lira Neto é sempre uma certeza de muita satisfação, informação e formação. Depois de ler a trilogia da biografia de Getúlio Vargas e a do padre Cícero, agora foi a vez do primeiro volume de uma nova trilogia sobre a história do samba. Uma história do samba - As origens. Uma primorosa edição da Companhia das Letras, um lançamento de 2017.
 Pesquisa de muito fôlego. Será sempre uma referência para quem estudar o samba.

Antes de partir para a resenha do livro, passo para a apresentação do projeto da trilogia. A referência está contida no próprio livro. "Esta é a primeira parte da história do moderno samba urbano. O presento tomo, que serve de abre-alas à série e tem como subtítulo As origens, concentra-se no Rio de Janeiro do final do século XIX, até o início da década de 1930, quando da realização dos primeiros desfiles das escolas de samba cariocas. O segundo volume mapeará a chamada Época de Ouro da música brasileira, compreendendo, portanto, o espaço temporal entre os anos de 1930 e 1945, quando o samba se institucionalizou como símbolo de uma proclamada "identidade nacional". O terceiro tomo, por fim, prosseguirá desse ponto em diante, até alcançar os cenários contemporâneos do samba, com seu rico e controverso leque de vertentes e derivações".

O primeiro tomo tem 342 páginas. Estas estão divididas em treze capítulos e 73 páginas de notas e referências bibliográficas das fontes. Um legado para os pesquisadores. Um detalhe, fontes inéditas. Acompanham ainda dois blocos de preciosas e históricas fotografias. Como pretendo fazer um apanhado geral, sem entrar em pormenores dos nomes dos protagonistas das origens do samba, os deixo aqui citados, tomando-os da contracapa do livro: "Rastreando os passos de bambas como Zé Espinguela, Donga, Sinhô, Pixinguinha, Ismael Silva e Noel Rosa, o livro investiga as letras e as melodias, os instrumentos e as gravações fonográficas, a sociologia e a política do ritmo. Lira demonstra que a trajetória do samba corresponde a sua gradativa incorporação ao imaginário cultural do Brasil, no qual festa e agonia se digladiam de modo intermitente".

Festa e agonia. Estas duas palavras resumem a história do samba. Isso também está expresso na bela frase que serve de epígrafe ao livro, tomada de Caetano Veloso - O samba é pai do prazer / O samba é filho da dor. "Desde que o samba é samba". Aparece ainda no prólogo do livro, sob o título Entre a agonia e a festa.  A dor é proveniente da escravidão e das políticas de exclusão que se seguiram à abolição e o prazer é a festa, pois, a própria palavra samba é sinônimo de festa. A alegria, mesmo em meio a tanta dor, sempre a esta superou. Vejam só o aspecto formativo do livro.

Bem, como vimos, o primeiro livro trata dos fins do século XIX e se estende até os anos 1930, tempo de Getúlio Vargas. Alguns fatos políticos e históricos precisam ser levados em conta, como a abolição e a proclamação da República, o fenômeno da urbanização da capital da República e as deliberadas políticas de exclusão social, decorrentes do imperativo da "Ordem e Progresso".
Lira Neto autografando o terceiro volume da biografia de Getúlio, em jantar na casa do amigo Rodolfo Prates.

Na há dúvidas de que o samba é de origem africana e que no Brasil, os seus primeiros ensaios são baianos, mas estes baianos vieram para o Rio de Janeiro. Hilário Jovino Ferreira é nome para ser anotado. Conhecer a geografia do Rio de Janeiro também ajuda a ler o livro. Foi o que me faltou bastante. Mas vamos tomar o centro como referência. Vamos até a Central do Brasil e acompanhar os trilhos da ferrovia. Ao longo deles e nos morros dos arredores ia morando o povão, enquanto os ricos foram rumando para a zona sul. Muitos casarões foram transformados em cortiços, que vieram abaixo com as políticas de Pereira Passos, o Haussmann brasileiro. A literatura ajudou bastante. Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Lima Barreto...

Um fato que me chamou bastante atenção foi a formação dos núcleos urbanos a partir dos fenômenos de exclusão social, pela inexistência de políticas públicas. Os soldados que regressaram da Guerra de Canudos (1896-97), sem soldo e sem lar, mais os negros libertos do Vale do rio Paraíba, com a decadência da lavoura cafeeira, formaram os primeiros núcleos urbanos na região portuária, do Valongo, na "Pequena África". As políticas de higienização protagonizadas por Pereira Passos promoveram novos deslocamentos, empurrando-os para mais longe e, ao menos no primeiro momento, a Praça Onze e os seus entornos foram a nova morada destas populações e, em consequência, também do samba.

Outro fenômeno interessante, bonito e tipicamente brasileiro é o sincretismo religioso, a partir da festa de Nossa Senhora da Penha, onde em meio aos cânticos religiosos, os instrumentos do povo negro foram cavando os seus espaços, junto com as comidas e quitutes da cozinha africana, ao longo das festividades, eminentemente populares.

Aí começa a história dos grandes nomes, dos quais, cada um mereceria uma biografia. Também  são citados os instrumentos e os grupos que se formaram. Mas a marca da dor e do prazer continua vivia. A dor pelos empregos mal remunerados, pelos horários rígidos a que eram submetidos em seus trabalhos mal remunerados e a presença da sífilis e da tuberculose, as doenças que provocavam as mortes precoces e, por outro lado, a ausência do saneamento também provocava as suas letais consequências. Além disso sofriam as constantes ameaças de prisão pela lei da vadiagem (1902) com a qual eram punidos os desocupados, tidos como vadios. Tudo servia de pretexto para a modernização e higienização. Mas as noites se tornavam intermináveis, nas casas das tias, com rodadas de cachaça, cerveja e os instrumentos e as vozes do samba. Estas dores e amores, sofrimentos da ausência do dinheiro e da perdas e ganhos nos amores eram a matéria prima deste grande marco da cultura e da identidade brasileira.

Os últimos capítulos são dedicados às escolas de samba e aos primeiros desfiles (1932-1933), com destaque para o segundo, realizado na Praça Onze, com a Mangueira (a Primeira) se sagrando bi campeã. O livro contém os regulamentos, as boas maneiras necessárias, a proibição do uso de instrumentos de sopro, da sátira política, do uso de símbolos nacionais, assim como os quesitos a serem julgados: harmonia, samba, enredo, originalidade e conjunto. É também o tempo da indústria fonográfica e da indústria cultural. A mulher, ao menos neste primeiro momento da história, entrava apenas como tema dos cantos, mas não ainda, como voz. Carmen Miranda, porém, já aparece no cenário. Fico na espera da continuidade, com a publicação do segundo volume. Aí entrará em cena Lupicínio, meu ídolo maior, Lembro ainda, que a Folha de São Paulo tem uma bela coleção - Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, dedicada a 25 cantores. A coleção tem folheto e um CD com a voz dos grandes astros.

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