domingo, 28 de maio de 2017

A esposa, a prostituta e o fim da CLT. A partir do filme - Queimada.

 Queimada é um poderoso filme político italiano (1969) que tem Gillo Pontecorvo como diretor e Marlon Brando como ator principal, no papel de um agente inglês que chega a ilha de Queimada e a ajuda a se tornar independente de Portugal, após a abolição da escravidão. Inicia assim o processo de dominação econômica dos ingleses, com o  domínio do comércio do açúcar na bela ilha caribenha. São retratos dos meados do século XIX, na transição do colonialismo para o imperialismo.
O monumental filme de Gillo Pontecorvo com a magnífica atuação de Marlon Brando.

Como é sabido, os ingleses já estavam em um estágio mais avançado de sua economia, pela via da industrialização, que não mais comportava mão de obra escrava. Por isso eram abolicionistas. Numa cena muito hilária, William Walker, o agente inglês, tenta explicar para a elite branca escravagista e outros fidalgos portugueses, as vantagens de substituir o trabalho escravo pela mão de obra assalariada. O exemplo que usa é de raro cinismo. Destaquei o diálogo e o reproduzo, ipsis litteris.

Sir William Walker: Senhores, deixe-me fazer uma pergunta. Minha metáfora poderá parecer um pouco impertinente.... mas acredito que é exata.
O que preferem.... ou devo dizer, o que acham mais conveniente? Uma esposa ou uma dessas mulatas? - se referindo às mulheres semi-nuas do harém (Em cena aparece uma mulata - meio Chica da Silva. Esta Chica da Silva já saiu do meu imaginário). Não me interpretem mal. Falo estritamente em termos econômicos.
Qual é o custo do produto? O que o produto propicia? O produto no caso, sendo o amor. Amor puramente físico... já que, obviamente, sentimentos não têm um papel econômico. Praticamente. Uma esposa precisa de um lar... com comida, roupas, cuidados médicos, etc. É necessário mantê-la a vida toda... mesmo depois que envelhecer e se tornar improdutiva.
E se tiverem o azar de viverem mais do que ela, terão de pagar o enterro. Em meio às risadas ele continua - Não, não. É verdade. Senhores, sei que parece divertido, mas são os fatos, não são? Por outro lado, com uma prostituta... o assunto é diferente, não é? Não há a necessidade de abrigá-la ou alimentá-la e certamente nem de vesti-la ou enterrá-la. Graças a Deus.
Ela é sua só quando precisam. Pagam-na somente por esse serviço... e pagam por hora. O que, senhores, é mais importante... e mais conveniente? Um escravo ou um trabalhador assalariado?

É muito cinismo. Termos estritamente econômicos... Os sentimentos não contam... O utilitarismo levado às últimas consequências. Não quero aqui retomar toda a história das conquistas dos trabalhadores, através de suas muitas lutas coletivas, que redundaram em direitos e que, minimamente, nos permitem chamar a evolução histórica de processo civilizatório. Hoje o imperativo econômico, através do neoliberalismo, ordena a destruição desta história.

Em 2016 assistimos no Brasil um processo que culminou com o golpe de Estado de 31 de agosto. Interesses inconfessáveis motivaram os golpistas. Estes não tardaram em aparecer. Uma das primeiras reformas propostas, em consonância com os comandantes dos mercados, foi a modernização da legislação trabalhista, com supressão de vínculos, de direitos. Vejam os jogos semânticos na tentativa de provocar ilusões. Reforma e modernização. Estas duas palavras implicitamente apontam para melhoras. No entanto, no caso destas reformas modernizantes o objetivo é a eliminação de todo e qualquer direito legal, com o famoso princípio da prevalência do acordado sobre o legislado. Tudo isso  é feito de forma muito generosa, é feito para restaurar e manter empregos. Haja cinismo.

Este princípio elimina laços e vínculos e institui o ser descartável. É o uso por hora, o uso para determinados serviços e gozos e que, pela consagração da mediação, sob o moderno nome de terceirização, consagra a figura do gigolô, do cafetão, sempre desprovido de sentimentos e  escrúpulos, ávido em tirar o máximo proveito.

Com certeza, a metáfora é forte. Mas observem sua procedência. Ela provém do agente inglês William Walker. É uma metáfora inglesa, o país protagonista das excelências do mercado, desde os tempos liberais até os neoliberais. É uma metáfora oriunda do mercado e, nele não cabem sentimentos, nem humanidades. No mercado se encontram competidores, que pautam e moldam suas vidas aos seus princípios. Nele o dinheiro é eleito como o valor supremo e absoluto, ao qual tudo é subordinado. E a partir desta compreensão, nada mais é estranho, a não ser o respeito à dignidade do ser humano.

Lembro, para encerrar, uma percepção de Giambatista Vico, nos alvores da restauração da primazia dos mercados sobre os ditames medievais, devidamente anotada  por Adorno. Ela trata da origem dos conceitos que se entranharam na cultura ocidental: "Estes conceitos provêm da praça do mercado de Atenas". Platão e Aristóteles nada mais fizeram, senão transformá-los em princípios universais.

O texto já está um tanto longo, mas acabo de ler, na revista CULT, nº 223, um trecho selecionado do livro de Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, escrito em 1845: "A relação entre o industrial e o operário não é uma relação humana: é uma relação puramente econômica - o industrial é o 'capital', o operário é o 'trabalho'. E quando o operário se recusa a enquadrar-se nessa abstração, quando afirma que não é apenas 'trabalho', mas um homem que, entre outras faculdades, dispõe da capacidade de trabalhar, quando se convence que não deve ser comprado e vendido enquanto trabalho como qualquer outra mercadoria no mercado, então o burguês se assombra. Ele não pode conceber uma relação com o operário que não seja a da compra-venda; não vê no operário  um homem, vê mãos (hands), qualificação que lhe atribui sistematicamente.

O burguês, para retomar a expressão de Carlyle, só reconhece um vínculo entre os homens: o pagamento à vista. Até mesmo a relação entre ele e sua mulher é, em 99% dos casos, a do pagamento à vista"...











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