terça-feira, 7 de julho de 2020

Mozart - Sociologia de um gênio. Norbert Elias.

Dando sequência às minhas leituras em tempos de pandemia, faço mais uma releitura.O livro da vez foi Mozart - Sociologia de um gênio, de Norbert Elias. O livro, como indica o título, é mais do que uma simples biografia. É uma biografia acompanhada de uma análise sociológica da época em que o artista viveu. Como certamente sabem, Mozart teve vida curta. Foram apenas 35 anos. Ele nasceu em Salzburgo em 1756 e morreu em Viena, em 1791. Lembrando que em Paris, em 1789, ocorre a famosa Revolução Francesa, mais propriamente chamada de Revolução burguesa.
Uma edição Jorge Zahar, 1995.

Essa percepção da mudança histórica e de suas consequências é a essência da análise de Norbert Elias. Mozart fora um artista de corte, atuando na corte de sua terra natal, a cidade de Salzburgo. Mas Mozart sempre quis ser um artista autônomo, um artista burguês para atuar num, digamos, livre mercado. De artista artesão queria passar para a arte de um artista. O artista era mais livre do que o artesão. Este vivia sob as ordens de um senhor, no caso, do arcebispo de Salzburgo, o conde Colloredo.

O livro de Norbert Elias está muito bem estruturado. Ele foi organizado por um estudioso de sua obra, Michael Schröter. Está dividido em duas partes: Parte I. Reflexões sociológicas sobre Mozart e a parte II. A revolta de Mozart: de Salzburgo a Viena. Na primeira parte Mozart fica sob a tutoria do pai, já músico da corte, e do arcebispo de Salzburgo, que lhe concede emprego estável. Tanto o pai quanto o filho são funcionários da corte. Tem, portanto, vida estável. A que custos, no entanto, devemos perguntar. A segunda parte mostra a ruptura tanto com o pai, quanto com o bispo.

Na primeira parte encontramos os seguintes títulos: Ele simplesmente desistiu, onde é mostrado um panorama geral de sua vida; músicos burgueses na sociedade de corte; Mozart se torna artista autônomo; arte de artesão e arte de artista; o artista no ser humano (a indissociabilidade); os anos de formação de um gênio; a juventude de Mozart - entre dois mundos sociais.

Na segunda parte temos: A revolta de Mozart: de Salzburgo a Viena; completa-se a emancipação: o casamento de Mozart; o drama da vida de Mozart; uma cronologia sob a forma de notas. Por essa cronologia, uma espécie de síntese de sua vida, vemos as diferentes fases de sua vida. A apresento, ao menos em partes. Antes, porém, quero deixar registrada uma frase bem expressiva a respeito do genial e precoce artista. Ele foi cultivado como uma planta em estufa. O pai foi para ele o professor, o empresário, o amigo, o médico, o guia de viagens e o mediador de negócios. A ruptura veio aos 25 anos. O pai projetara os êxitos de sua vida na carreira do filho. Possivelmente Mozart se antecipou ao seu tempo. Não foi capaz de efetuar a transição de um tempo passado, com o qual se defrontava. Uma geração depois, Beethoven conseguiu os êxitos do artista de "mercado".

Mas vamos à cronologia em forma de notas: 

Ato I: 27 de janeiro de 1756 - setembro de 1777. Infância e juventude de um gênio; pai e filho. O desenvolvimento de uma relação; a busca infrutífera de postos nas cortes da Europa; mudança na voz  (em Nápoles) e a pressão crescente  da dominação do pai; o singular treinamento musical de Mozart. Relações com todos os músicos conhecidos e famosos da época (Bach, Gluck, Haydn, Johann Adolf Hasse, padre Martini). Tudo isso, além do treinamento intensivo pelo pai,

Ato II. Setembro de 1777 - 8 de junho de 1781. Primeira viagem sem o pai. Começo da emancipação e suas dificuldades: consciência. O primeiro caso amoroso (conhecido): sua prima (Bäsle), a mulher vulgar para Mozart. [...] A primeira grande briga com o pai; o humor fecal de Mozart. [...] Noção cada vez maior, de seu próprio valor. Noção cada vez maior, de sua vocação como compositor, especialmente de óperas. (Tempos de grande produção). Volta a Salzburgo [...]. Rompimento com o arcebispo.

Ato III. 8 de junho de 1781 - maio de 1788. Liberação da imaginação artística, individualização do padrão. Música de corte sob uma forma única, altamente individualizada. Para mencionar apenas as óperas: 16 de julho de 1782, primeira apresentação de O rapto do serralho ("Notas demais", disse o imperador). Primeira apresentação de Die Räuber (Os salteadores), de Schiller. 1º de maio de 1786, As bodas de Fígaro; recebida com críticas. 7 de maio de 1788, Don Giovanni. Medidas de economia em Viena, devido à guerra com os turcos.

Ato IV: 1788 - 5 de dezembro de 1791. Solidão crescente, decepções cada vez maiores. Se este ato fosse representado dramaticamente, ver-se-ia Mozart de pé, no palco, enquanto as pessoas conhecidas se vão embora, uma a uma. A esposa passa a maior parte do tempo nas estações de águas, as alunas nobres/patrícias que tinha anteriormente (são citadas) foram-se todas. Aumentam as dívidas e as preocupações com dinheiro. Os concertos por subscrição que ele anuncia fracassam redondamente. Don Giovanni  é recebido com frieza em Viena, embora saudado calorosamente em Praga. Suas cartas mostram-no num estado de desespero crescente, em parte devido aos problemas financeiros, em parte devido ao seu isolamento psicológico. As razões são diversas: - rejeição pela sociedade aristocrática de corte devido ao Fígaro, que provavelmente foi tido como sedicioso. - Suas obras são cada vez mais difíceis de entender. - Compõe cada vez mais para si mesmo, seguindo o impulso de sua própria imaginação. As três grandes sinfonias e outras obras são produzidas sem patronos, como artista autônomo. Mas, na época, as instituições de um mercado livre para obras musicais mal existiam.

Mais quatro parágrafos da orelha do livro: "Mozart foi educado na tradição da música de corte, numa sociedade que considerava os músicos como trabalhadores manuais, e de quem se esperava apenas que produzissem entretenimento para uma audiência cortesã. Ao longo de sua vida, esteve constantemente em busca de trabalho, porém o único emprego que conseguiu foi o de organista na pequena corte de Salzburgo.

Ao descrever como o compositor tentou levar em Viena uma vida de músico autônomo, Norbert Elias esclarece que só na geração seguinte - a de Beethoven - é que foram criadas condições necessárias para esse gênero de atividade. Mozart fracassou, argumenta ele, porque deu um passo no sentido da independência numa sociedade que ainda não estava preparada para tal. A rejeição da aristocracia de Viena, as dívidas cada vez maiores e nenhuma perspectiva de satisfazer seus desejos mais íntimos fizeram com que Mozart morresse com o sentimento de que sua existência social naufragara e de que sua vida se tornara vazia de significado.

Como mostra o autor, 'a situação de Mozart era muito peculiar. Embora fosse socialmente dependente e subordinado à corte de aristocratas, a consciência de seu extraordinário talento musical fez com que se sentisse igual, senão superior, a eles. Era, em suma, um gênio, um ser humano excepcionalmente talentoso e criativo, nascido em uma sociedade que ainda não conhecia o conceito romântico de gênio, e cujo cânone social não previa lugar para artistas originais em seu meio'.

Em Mozart, sociologia de um gênio, Elias aplica seu enorme poder de percepção a este caso de conflito trágico entre criatividade pessoal e uma sociedade que queria controlá-la. Um livro para estudiosos e pesquisadores da sociologia, da história europeia e da história da música, bem como para qualquer pessoa interessada na vida e na obra de Mozart". Nós, no caso. Maravilhoso livro - vida sofrida.

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