terça-feira, 16 de julho de 2019

O arquivo. Victor Giudice.

Já conhecia este conto, mas o havia posto no arquivo da memória. Agora, dentro da contextualização da greve estadual da APP-Sindicato (25 de junho a 13 de julho de 2019), o meu amigo Sebastião Donizete Santarosa o publicou, com direito a des dedicatória, para os diretores do sindicato e mais algumas lideranças do mesmo. Considero importante sua publicação. É um tratado sobre a rendição humana, meio incondicional, até a transformação em um mero arquivo. Ou seria sobre a irreversibilidade dos fatos, passiva e bovinamente metabolizados, sempre determinados pelos poderosos. Um eufemismo acabou com a dita greve. A palavra fim foi substituída pela palavra suspensão. Não entro em detalhes da negociação e da proposta, se é que houve uma proposta. Vamos direto ao conto. É ele que eu quero divulgar.
Victor Giudice, 1934 - 1997. O autor deste conto sobre a rendição.


O arquivo
Victor Giudice


No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.

joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.
Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.

joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.

Respirou descompassado.

— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.

— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.

Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.

Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:

— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

João transformou-se num arquivo de metal.

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Seguem informações sobre o autor e sua vida literária.

No período em que trabalhou no Jornal do Brasil, de 1994 a 1997, Victor Giudice se destacou pelo companheirismo e pelo bom humor que marcava suas histórias. Os casos com que divertia seus colegas geralmente diziam respeito a duas de suas maiores paixões: os livros e a música.

Em 1995, foi agraciado com o Prêmio Jabuti pelos contos reunidos em "O Museu Darbot e outros mistérios", que recebeu o seguinte comentário da presidente da Academia Brasileira de Letras, a escritora Nélida Piñon: "Victor Giudice é um escritor contemporâneo completo. Sua busca por uma linguagem mais simples só prova que deixou de ser um escritor de vanguarda para se tornar um mestre. Já é um clássico." (Extraído do "Jornal do Brasil" , Segundo Caderno/1998).

Victor Giudice (1934-1997) nasceu em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. Aos cinco anos de idade mudou-se para São Cristóvão, transformado, segundo a crítica, em seu "grande sertão ficcional" , onde viveu mais da metade de sua vida. Foi professor, bancário, jornalista, músico, ensaísta e crítico. A partir de 1968, intensificou suas atividades como escritor, tendo publicado seis livros: O necrológio (contos, Editora O Cruzeiro, 1972), Os banheiros (contos, Editora Codecri,1979), Bolero (romance, Editora Rocco, 1985), Salvador janta no Lamas (contos, Editora José Olympio, 1989), O museu Darbot e outros mistérios (contos, Editora Leviatã,1994) e O sétimo punhal (romance, Editora José Olympio, 1996).

Salvador janta no Lamas ganhou o Prêmio "Ficção 89", da Associação Paulista de Críticos de Arte. O museu Darbot e outros mistérios foi agraciado com a maior distinção literária do país, o Prêmio Jabuti, e foi lançado no Salão do Livro de Paris em 1998 (Le Musée Darbot et autres mystères, Editions Eulina Carvalho).

Para o teatro, escreveu Baile das sete máscaras, inédito, e o monólogo Ária de serviço, encenado pela atriz Bete Mendes, no Centro Cultural Banco do Brasil, em 1991. Compôs e executou ao vivo a trilha sonora da peça Prometeus, do Grupo Mergulho no Trágico.

Suas atividades como professor incluem, além de oficinas de criação literária, cursos de Introdução à Ópera, Wagner e Música Sinfônica, ministrados no Centro Cultural Banco do Brasil e em outras instituições. Participou das Rodas de Leitura, no CCBB, e na Casa da Leitura e viajou pelo país como conferencista.

Vários de seus contos foram publicados nos Estados Unidos, Argentina, México, Portugal, Alemanha, Hungria, Polônia, Bulgária, Tchecoslováquia. Uma de suas narrativas mais populares, O arquivo, foi o conto brasileiro mais publicado no exterior. Outro conto, Carta a Estocolmo, foi considerado, nos Estados Unidos, um dos quinze melhores trabalhos de ficção científica de 1983 e consta da antologia Antaeus (The Ecco Press, Nova York, 1983).

Publicou ensaios e resenhas no Jornal do Brasil, O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Suplemento Literário do Minas Gerais, etc. Durante três anos assinou a coluna Intervalo, especializada em música erudita, no Jornal do Brasil, tendo sido esta sua última atividade.

A editora José Olympio planeja a publicação de uma coleção que reunirá todos os seus contos. Do primeiro volume, programado para 1999, constarão O museu Darbot e outros mistérios e o romance inédito e inacabado Do catálogo de flores.


Texto publicado originalmente no livro "O Necrológio", Edições O Cruzeiro — Rio de Janeiro, 1972, foi incluído por Ítalo Moricone em sua seleção dos "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 382.

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Com relação ao governador sugiro a leitura do conto O Flautista Mágico, dos irmãos Grimm. Um pouco de doçura, o som mavioso de uma flauta restaurou a alegria na cidade. Deixo um parágrafo da resenha da obra. "A alegre cidade de Hamelin foi invadida por uma ninhada de ratos e os moradores não sabiam mais o que fazer para acabar com os bichos. Mas, um músico e sua flauta surpreenderam a todos mostrando os poderes das notas musicais. Divirta-se nessa incrível aventura cheia de emoção e aprendizagem". Eles se jogaram ao rio Weser..
  

2 comentários:

  1. É sempre bom relembrar "O Arquivo", no entanto:

    O texto é mais antigo, foi publicado antes, em 27 de junho de 1970, no suplemento Literário do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro.
    Tanto a "Edições O Cruzeiro" quanto o "Jornal do Commercio" pertenciam ao grupo dos Diários Associados.
    Na publicação original o "J" de João está em maiúsculas.
    Portanto Victor Giudice, além dos jornais mencionados, escreveu também para o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, o mais longevo jornal brasileiro, publicado de 1827 a 2016 de forma ininterrupta.

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    1. Marcos, fica registrada a sua observação. Observação de quem conhece. Registro também os meus agradecimentos pela sua informação.

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