terça-feira, 2 de março de 2021

Racismo estrutural. Sílvio Almeida.

A leitura necessariamente chama ou clama por novas leituras. Lendo sobre a questão da escravidão, e a sua permanência dentro da realidade brasileira, mais cedo ou mais tarde, você se depara com o livro de Sílvio Almeida, Racismo estrutural. O livro é extraordinário e, como o título define, o fenômeno do racismo é visto em sua forma estrutural, isto é, ele está nas entranhas do sistema capitalista, colonialista, imperialista, sistema em que estamos inseridos, quer queiramos ou não.
Racismo estrutural. Sílvio Almeida. Jandaíra. 2020. Coleção Femismos Plurais.

Na orelha do livro, Marcelo Paixão, professor do Departamento de Estudos Africanos e Afro-diaspóricos da Universidade de Austin, do Texas, e que foi debatedor com o Sílvio Almeida numa comunicação sobre o movimento negro na Universidade de Harvard, assim se expressou sobre o livro: "O livro Racismo estrutural reflete o que ouvi naquela apresentação. E, como tal, é uma importante contribuição de um jovem intelectual negro para o avanço do pensamento social do país rumo a novas abordagens mais críticas e ousadas sobre os antigos, novos e novíssimos problemas enfrentados pelo Brasil". A partir disso eu faço a minha confissão: com a leitura do livro, pela primeira vez, também eu me senti nesta Universidade, entre os presentes à palestra.

O livro todo é maravilhoso. O encanto me veio já a partir das primeiras páginas, quando o autor fala sobre raça e racismo, de uma perspectiva histórica. Assinalo dois parágrafos que para mim se constituíram na chave para a compreensão do livro. Eles põem em cheque o processo civilizatório do mundo moderno, do projeto do iluminismo. A fundamentação está em Achile Mbembe. São eles: "Achile Mbembe afirma que o colonialismo foi um projeto de universalização, cuja finalidade era 'inscrever os colonizados no espaço da modernidade'. Porém, a 'vulgaridade, a brutalidade tão habitualmente desenvolvida e sua má-fé fizeram do colonialismo um exemplo perfeito de anti-liberalismo'. No século XVIII, mais precisamente a partir do ano de 1791, o projeto de civilização iluminista baseada na liberdade e igualdade universais encontraria sua grande encruzilhada: a Revolução Haitiana". E continua:

"O povo negro haitiano, escravizado por colonizadores franceses, fez uma revolução para que as promessas de liberdade e igualdade universais fundadas na Revolução Francesa fossem estendidas a eles, assim como foram contra um poder que consideraram tirano, pois negava-lhes a liberdade e não lhes reconhecia a igualdade. O resultado foi que os haitianos tomaram o controle do país e proclamaram a independência em 1804" p. 27. Pronto estava instaurado o mundo moderno. O iluminismo virou capitalismo, colonialismo, nacionalismo, imperialismo, escravidão, racismo, apartheid e toda a sorte de dominações e sofrimentos.

A negação dos princípios da liberdade e da igualdade se instauraram nas entranhas da estrutura capitalista em seu todo. Logo o iluminismo se consorciou com o positivismo e procurou legitimar todo o sistema de opressão em nome do processo civilizatório. Além de mostrar essas preciosas observações históricas, o cerne do livro está ancorado em quatro capítulos essenciais, dos quais apresento a estrutura. São eles: 1. Racismo e Ideologia; 2. Racismo e Política; 3. Racismo e Direito; 4.Racismo e Economia. Vamos começar pelo primeiro: racismo e ideologia: Como naturalizamos o racismo; racismo, ideologia  e estrutura social; racismo ciência e cultura; branco tem raça?; racismo e  meritocracia.

O segundo desses capítulos é racismo e política: Mas o que é o Estado?; Estado e racismo nas teorias liberais; Estado poder e capitalismo; raça e nação; representatividade importa?; da biopolítica à necropolítica; racismo e necropolítica. O terceiro capítulo aborda: racismo e o direito. O que é direito?; o direito como justiça; o direito como norma; o direito como poder; o direito como relação social; raça e legalidade; direito e antirracismo.

O quarto capítulo é dos mais importantes, mostrando o entrelaçamento entre o racismo e a economia. As questões levantadas e debatidas são: racismo e desigualdade; uma visão estrutural do racismo e da economia; racismo e subsunção real do trabalho ao capital; o racismo e sua especificidade; sobre a herança da escravidão; classe ou raça?; racismo e desenvolvimento; crise e racismo; o que é a crise, afinal?; o racismo e as crises; o 'grande pânico' de 1873; o imperialismo e neocolonialismo; a crise de 1929, o Welfare State e a nova forma do racismo; neoliberalismo e  racismo.

É a essência do livro, mostrando as interligações do racismo com a ideologia, com a política, com o direito e com a economia. Depois disso é impossível não dizer que o racismo é efetivamente estrutural. O livro é acompanhado de muitas análises históricas e dos melhores referenciais teóricos sobre os temas abordados.

A leitura me fez lembrar de aulas de filosofia que eu dei e me fez buscar duas anotações que fiz ao pé da página do manual de filosofia da Marilena Chauí, Convite à Filosofia, que eu usava muito. A primeira é a frase de Marx, que chama para a necessidade do estudo e da investigação científica; "Se a aparência fosse igual à essência, não haveria a necessidade da ciência" e a segunda é a anotação de quatro palavras, com as quais pode ser instaurada ou explicitada uma base para a dominação e a submissão. São elas: dividir, hierarquizar, naturalizar e universalizar.

E como aperitivo provocativo para a leitura do livro, um parágrafo que fala do atualíssimo tema da austeridade fiscal e de suas consequências: "Chama-se por austeridade fiscal o corte das fontes de financiamento dos direitos sociais a fim de transferir parte do orçamento público para o setor financeiro privado por meio dos juros da dívida pública. Em nome de uma pretensa 'responsabilidade fiscal', segue-se a onda de privatizações, precarização do trabalho e desregulamentação de setores da economia. Do ponto de vista ideológico, a produção de um discurso justificador da destruição de um sistema histórico de proteção social revela a associação entre parte dos proprietários dos meios de comunicação de massa e o capital financeiro: o discurso ideológico do empreendedorismo - que, na maioria das vezes, serve para legitimar o desmonte da rede de proteção social de trabalhadoras e trabalhadores -, da meritocracia, do fim do emprego e da liberdade econômica como liberdade política são diuturnamente  martelados nos telejornais e até nos programas de entretenimento.

Ao mesmo tempo naturaliza-se a figura do inimigo, do bandido que ameaça a integridade social, distraindo a sociedade que, amedrontada pelos programas policiais e pelo noticiário, aceita a intervenção repressiva do Estado em nome da segurança, mas que, na verdade, servirá para conter o inconformismo social diante do esgarçamento provocado pela gestão neoliberal do capitalismo. Mais do que isso, o regime de acumulação que alguns denominam de pós-fordista dependerá cada vez mais da supressão da democracia". p. 206. O livro, entre capítulos e notas, tem 255 páginas.

Por fim a contracapa do livro, por ser bem ilustrativa: "Racismo estrutural traz reflexões inovadoras acerca da construção das noções de raça e racismo.  Depois de fornecer argumentos e tecnologias para a escravidão e o colonialismo, tais conceitos desafiam as sociedades contemporâneas como o Brasil, onde crescem anseios por igualdade racial. A indagação central da obra exige resposta complexa, englobando aspectos históricos, políticos, sociais, jurídicos, institucionais. O autor nos convida à sua demonstração, tecida em análises feitas à luz da Filosofia, da Ciência Política, da Economia e da Teoria do Direito. Com escrita sedutora e admirável erudição, Sílvio Almeida finca o produtivo conceito de racismo estrutural. 

Seu livro constitui-se, desde já, em importante referência para a educação antirracista, calcada nos valores da igualdade, da liberdade e do direito à vida". A referência é da professora Lígia Fonseca Ferreira, da UNIFESP. Sílvio Almeida é professor e advogado, com pós doutorado pela Faculdade de Direito da USP, do Largo de São Francisco.

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