domingo, 18 de abril de 2021

A misteriosa chama da rainha Loana. Romance ilustrado. Umberto Eco.

É mais um Umberto Eco. Trata-se de A misteriosa chama da rainha Loana. Romance ilustrado. Comprei o livro em 2009 e o li em partes. Fiz até alguns apontamentos. Deles não me lembrava absolutamente nada. Não, não se apavorem. Eu não perdi a memória. Apenas para dizer que o livro trata da perda da memória e da tentativa e dos esforços feitos para recuperá-la. O livro se divide em três partes: Primeira: O acidente; Segunda: Uma memória de papel; Terceira: OI NOZTOI (O Z, na verdade é o Zigma).

A misteriosa chama  da rainha Loana. Umberto Eco. Record. 2005. Tradução: Eliana Aguiar.

Na primeira parte Yambo, o protagonista do romance, sofre um acidente (certamente um AVC) e perde a memória em partes. Não mais lembra quem ele é ou como se chama, mas ainda consegue dirigir, identificar as diferentes cores e não perdeu o sabor (ainda bem - assim pode tomar uma garrafa de vinho, acompanhando as refeições). Relembra a sua profissão de comerciante de livros raros e de sua secretária, a bela (bela até demais - segundo Paola, a esposa) Sibilla. Politicamente, lembra que era um pacifista. São os quatro primeiros capítulos.

Na segunda parte, Yambo busca a recuperação da memória, indo para a pequena cidadezinha de Solara, onde, na casa do avô, volta a ter contato com os anos de sua infância e juventude. É a parte mais longa do livro e grande parte dele se passa no sótão, onde estão encaixotadas as coisas desse tempo. Passa por reencontrar uma enciclopédia, revistas em quadrinhos, um rádio e documentos e recortes de jornais dos anos do Fascismo e da Guerra. A época retratada, os anos de infância e juventude, são os da década de 1930 e 1940. Encontra ainda discos e seus cadernos e livros escolares. Aí está a preciosidade do romance. A reconstituição de uma época, retratada pelos livros oficiais. Como eles vão até depois da guerra, é notável observar a mudança de posição com relação a valores e heróis. Passa oito dias no sótão e a sua pressão se altera, ela sobe.

Quando descobre um livro raro de Shakespeare, que vale uma fortuna, ele não aguenta. Entra em coma. Aí vem recordações enevoadas. As artimanhas de um narrador. É a terceira parte do livro. As contraposições da história oficial se acentuam com as derrotas do nazi-fascismo, mostradas especialmente nas revistas em quadrinhos, onde agora irão aparecer os heróis norte-americanos. O capítulo dezesseis é o mais rico deles. Nele, Yambo estabelece diálogos com Gragnolo, um jovem anarquista, um contestador, qualidade inerente a todo anarquista. Deus, o Bem e o Mal, Fascismo e Livre Arbítrio são alguns temas abordados. Nesta parte do livro ele entra, não sei se é correto dizer, em fluxos de consciência. Relembra os seios nus de Josephine Baker e a homenagem que lhe presta, devidamente confessada ao padre, - mas se fixa mesmo, num amor platônico de sua adolescência, - a menina, LILA, que na história real desaparecera por completo de seus horizontes. Ela viera para o Brasil e dela não se teve mais notícia. Sim, o romance tem a Itália fascista como cenário junto com a eclosão da Segunda Guerra e o seu final. Esse amor seria a misteriosa chama?

Para dar uma ideia mais precisa do livro, transcrevo a sua orelha: "Depois de Baudolino, Umberto Eco lança um romance cheio de calor e lembranças, de suspiros (mitigados) e saudades. Decidiu assumir a paisagem de sua geração e, a partir dessa luz, obteve uma narrativa de fundo biográfico, num vasto painel dos anos 1930 e 1940, do brevíssimo e sobressaltado século XX.

O protagonista, Yambo, é um senhor de meia-idade, provido de grande cultura, que trabalha com livros raros, em Milão. Após salvar-se de uma doença grave, Yambo perde uma parte da memória afetiva ou biográfica. Para tentar recuperá-la, passando um longo período nas montanhas do Piemonte, na casa que fora de seu avô. As lembranças reaparecem - com idas e vindas - quando se depara com um acervo que lhe marcou a infância: jornais, discos, quadrinhos - um imenso parque (ou cemitério) de objetos. Toda uma semiologia que leva aos tempos do Fascismo e às portas da Segunda Grande Guerra.

Desdobra-se o romance no repertório fundamental da primeira e da segunda infâncias de Yambo-Eco, nos sonhos de heróis e distâncias impossíveis: das figurinhas de álbuns famosos aos mais diversos gibis; do suplemento Corrieri dei Piccoli; das obras de Emilio Salgari, em orientes perdidos e suspirados; da canção popular, por onde passam jovens frágeis e inesquecíveis (Signorinella pallida), outras, apaixonadas (C'erevamo tanti amati), ousadas, patriotas ( Le ragazze di Trieste); além dos hinos fascistas, com suas promessas de perenes primavera e juventude (Primavera , Giovinezza),, visando ao fortalecimento moral das fronteiras do Império Italiano. E mais, o rádio de galena, as ondas curtas e a BBC de Londres.

Que o leitor descubra todo o percurso de Yambo, e que reconheça imagens e canções, que marcaram parte essencial da história da Itália e do Mundo.

Nesse romance pós-moderno, será difícil não evocar as Confissões de Agostinho ou a filogenética, a delicada fronteira do repertório individual e do coletivo, o palácio da memória e a digital da história. Eco nos traz um romance largo e emocionado"

Como pontos altos do livro, destacaria, do capítulo 17 (são 18 ao todo), a discussão entre Yambo e Gragnolo, o seu amigo anarquista, uma discussão sobre o fascismo (p. 341), sobre os males contidos nos dez mandamentos (apenas quatro são bons), ditados por um Deus fascista (p. 342-345), sobre o Bem e o Mal e o Livre Arbítrio. Do Livre Arbítrio tomo a reflexão final: "Você fala como um teólogo, só que todos eles falam de má-fé. Dizem como você que o Mal existe, mas Deus nos deu o mais belo presente do mundo que é o livre-arbítrio. Podemos livremente fazer o que Deus ordena ou o que o diabo sugere, e se depois vamos para o inferno é porque não fomos criados como escravos, mas como homens livres, só que usamos mal a nossa liberdade e isso foi uma decisão nossa". Isso. Isso? Mas quem lhe disse que a liberdade é um presente? p. 349. E aí vem as contestações.

O fato de ser um romance ilustrado nos põem em contato com um rico acervo de capas de livros e de revistas, de manchetes de jornais e artistas em cartaz na época. Coisa bem do campo e do domínio do escritor.  Dois grandes temas em foco. A perda da memória e a memória dos tempos do fascismo.

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