quarta-feira, 5 de maio de 2021

A Metamorfose. O Veredicto. Franz Kafka.

Depois de ler o magnífico Franz Kafka & Praga, de  Harald Salfellner, decidi avançar nas leituras desse grande e emblemático escritor. O livro/biografia é um passeio pelos locais de formação, de trabalho e de seus escritos. Pode servir até de guia para quem alimenta o desejo de visitar essa fantástica capital europeia, que nos tempos de Kafka, nada devia em efervescência cultural a capitais como Paris, Viena e Berlim. Além disso, o livro também envereda pela vida familiar complicada, embora de leve, especialmente a relação com o seu pai, um comerciante de origem judaica. Os negócios marcaram a vida do pai. Ele era unidimensional. Não havia espaço para atenção e afeto.

A obra de Kafka precisa ser lida com muita atenção. Não é leitura de entretenimento. Recentemente eu reli O Processo e agora retomei A metamorfose, "a mais conhecida, a mais citada, a mais estudada de suas obras", conforme nos conta Marcelo Backes em Prefácio ao livro, na edição da L&PM. Dele, Kafka se ocupou ao longo de 20 dias, entre os meses de novembro e dezembro de 1912. Na mesma edição temos uma pequena resenha biográfica do escritor. Vejamos o que se lê sobre o ano de 1912:

A Metamorfose. Franz Kafka. L&PM. Tradução e notas de Marcelo Backes.

"O ano capital na vida de Kafka. Viaja com Max Brod (seu maior amigo, confidente e responsável pela internacionalização da obra e a sua não destruição) a Weimar e conhece de perto o ambiente dos grandes clássicos, Goethe e Schiller. [...] Em setembro escreve O veredicto (Das Urteil), sua primeira obra de importância. Em outubro é tomado, conforme pode-se ver nos Diários iniciados quatro anos antes, por pensamentos de suicídio. De 17 de novembro a 7 de dezembro escreve A metamorfose (Die Verwandlung), a mais conhecida de suas obras".

Esta obra inicia com a impactante frase - "Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso". Assim começa a metamorfose do trabalhador Gregor Samsa/Franz Kafka. A transformação do ser humano em animal/coisa. A novela é profundamente autobiográfica. Na exata medida em que se metamorfoseou também lhe vieram cobranças. Devia ter levantado para pegar o trem das cinco horas da madrugada para cumprir a sua jornada de trabalho. Suas frágeis perninhas, perninhas de inseto, não o sustentavam. O mesmo acontecia nos horários seguintes.

Toda a família dependia de Gregor Samsa. O pai havia falido e não mais trabalhava. A irmã Grete era ainda uma mocinha. Com o seu trabalho Gregor mantinha a família no  padrão de classe média, o que implicava pagar também aulas de violino para a irmã. Na medida em que o tempo passava e o quarto não se abria, vinham e aumentavam as cobranças. O pai mandara chamar o serralheiro para arrombar a porta, a mãe mandara chamar um médico, o gerente veio lhe cobrar a ida ao trabalho e lhe fazer cobranças de produtividade. A irmã, junto com a mãe, se preocupavam com o seu estado.

Com o passar do tempo as coisas só foram se agravando. Samsa já não andava, apenas se arrastava. O trabalhador, um caixeiro viajante, não se recuperava. A novela é dividida em três capítulo. O primeiro deles descreve a metamorfose, a coisificação do pobre rapaz, as cobranças e o desespero da família e a incompreensão e a brutalidade do pai. No segundo, Gregor já se adaptara a sua nova situação, já tinha o domínio de si, já vivia a sua coisificação. Seu quarto passa por adaptações para melhor se adaptar a vida de rastejante. Do pai, apenas via o gigantismo de suas botas opressoras a lhe dedicar uma guerra com o jogar nele as frutas existentes na casa. Joga-lhe uma maçã nas costas e ela se aloja nelas. Tudo é profundamente simbólico. A maçã lhe é jogada por trás, nas costas. A maça simbolizando o pecado original do existir e, ainda por cima, pelas costas.

O terceiro capítulo trata da nova situação da vida familiar. O pai trabalha de funcionário num banco, A mãe costura para um empresário e Grete, atrás de um balcão. O aluguel do quarto de Grete para três forasteiros complementa o orçamento da casa. Gregor é mantido no quarto, às escondidas. O pai se desmancha em cuidados com os inquilinos. Estes se assustam quando Gregor consegue dar uma escapada do quarto. A situação se torna insustentável quando Grete reclama que esta "coisa" não pode mais ficar na casa. Quando esta "coisa" percebe a situação, Gregor simplesmente morre. A família muda de casa e assim a vida simplesmente continua.

Uma obra profundamente existencialista, que põe o ser humano frente ao trabalho opressivo, frente ao emprego e o medo de perdê-lo e a coisificação da existência. Kafka chegara a frequentar clubes socialistas. Também o põe em contato com as relações familiares, a convivência entre marido e mulher e filhos e a figura opressora do pai. Kafka sempre tivera graves problemas em suas relações familiares, tanto com o pai (Carta ao pai) quanto com as suas noivas. Vamos em frente, com O Veredicto.

Homenagem a Kafka, na casa de seu nascimento, em Praga.

O veredicto é um conto de apenas 20 páginas, em livro de bolso, escrito num domingo à noite. Foi iniciado as dez horas e, as seis da manhã de segunda, já estava concluído. Ele trata de toda a relação complicada que existe entre pai e filho, a morte da mãe, o noivado do filho que amadurece, de um amigo distante e o veredicto condenatório do pai. Uma obra profundamente emblemática.

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