quarta-feira, 6 de março de 2013

Confissões - Darcy Ribeiro.

Pela lei da Anistia, de 1979, os brasileiros que haviam sido expatriados, finalmente puderam retornar ao seu país. Entre eles estava Darcy Ribeiro. Procurou retornar ao trabalho. Na FUNAI lhe deram uma aposentadoria ex-officio, mas a UFRJ o acolheu, por intervenção do ministro da educação, Eduardo Portela. Ali retomou a sua cadeira de antropologia, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Darcy descreve esta sua volta:

"Passei imediatamente a dar aulas no IFCS, onde muita coisa me surpreendeu. Praticamente ninguém sabia nada de mim, senão como um político errado e como um subversivo. Nenhum aluno tinha lido nada meu. Até meus colegas, jovens antropólogos, achavam que eu era descartável. Percebi isso mais cruamente quando verifiquei que alunos que faziam mestrado em filosofia sobre Heidegger e outros sábios nunca tinham ouvido falar de Álvaro Vieira Pinto, o único filósofo ativo que nossa casa havia produzido. O veto ditatorial a todos nós exilados funcionou. [...] Uma raça nova, diante do vazio, se expande formidavelmente".
O belo livro de Confissões de Darcy Ribeiro. Companhia de Bolso. 535 páginas.

Darcy marcou época. Nem mesmo a ditadura militar conseguiu ofuscar completamente o seu nome. Se a continuidade democrática não tivesse sido interrompida no Brasil de 1964 e, com o trabalhismo continuando no poder (Jango) Darcy poderia ter chegado, inclusive à presidência da República. É admirável a sua paixão pelo povo brasileiro e o seu inconformismo ativo com a sua realidade, de um povo faminto e iletrado, oprimido por uma elite, caracterizada em seu livro, com o revelador título de O Mulo.

Em seus momentos finais de vida  ainda nos deixou dois livros. O Povo Brasileiro, em que reuniu seus estudos de antropologia sobre a formação do povo brasileiro e as suas vibrantes Confissões, um dos livros mais sinceros e explícitos que eu já li. Quem quiser conhecer Darcy, para um pouco além do "político errado e como um subversivo" tem com a leitura deste livro, uma excelente e agradável oportunidade.
Quem são os brasileiros? Esta questão está respondida no livro e no DVD, que a partir dele surgiu.

As Confissões são extraordinárias. Em mais de 500 páginas descreve desde a sua infância em Montes Claros (MG) e o seu destino para ser um fazendeirão da elite brasileira, até os seus momentos finais, ainda marcados e vividos em função da transformação da sociedade brasileira, passando por seus estudos de antropologia, por sua convivência com os índios, a sua militância política, se integrando ao trabalhismo, ocupando cargos e fundando a Universidade de Brasília. Passa também pelos dissabores causados pela ditadura militar, mais doída em manter o povo na opressão, do que os danos pessoais causados. Passa pelas suas doenças, pela volta à atividade política e pela sua vida de intelectual ativo, produtivo e engajado. Grande destaque é dado à sua paixão pelo povo, só não maior do que o seu amor pelas mulheres, fato de que reclama, por terem sido tão poucas.
Darcy também enveredou pelo romance. Maíra é o seu romance do tempo de convivência com os indígenas.

o livro é construído em um crescendo extraordinário. Começando pela sua vida de estudante em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Pela sua vida universitária, pelo abandono do curso de medicina e o seu deslumbramento com as ciências sociais e, em particular,pela antropologia. Extraordinária é a descrição de sua formação, das janelas que se abriram para olhar para o mundo, que foram as da literatura e do cinema. Estas janelas o tornaram a serpente, que troca de pele, para continuar vivendo. Assim foi se formando o seu mundo, distante dos limites de sua Montes Claros.

Depois veio a sua convivência com os índios. Dez anos vivendo com vários povos e produzindo a literatura básica brasileira sobre eles. Teve esta experiência extraordinária de conviver com outras culturas, de raízes diametralmente opostas, o que o fez ser um apaixonado pelos seus valores culturais. Descreve a riqueza do que foi conviver, tanto com os índios, quanto com os poucos defensores que eles tiveram, como Rondon e os irmãos Vilas Boas. Orgulha-se de sua participação, no convencimento de Vargas, para a criação do Parque Nacional do Xingu.

O melhor do livro, no meu entendimento, está contido em cerca de 200 páginas, que vão mais ou menos da página 200 a 400. Ali está narrada a sua aproximação com a educação, com Anísio Teixeira, a sua concepção de universidade, com a criação da universidade de Brasília, a sua relação com Jango, como seu chefe da Casa Civil e a derrocada do governo pelas tramas do golpe militar que estava se engendrando.É um documento para a história do Brasil, elaborado a partir de uma visão extremamente privilegiada. A sua visão sobre a conduta do general Assis Brasil na chefia da casa militar é um depoimento histórico valiosíssimo.

Depois vem os exílios. No Uruguai, descreve a sua relação com a Universidade da República e a sua produção teórica, quase toda ali elaborada. No Chile, com a vitória de Allende e a assessoria que lhe presta e no Peru, os trabalhos de assessoria ao General reformador, Velasco Alvarado. É também o seu tempo de andanças e reconhecimentos, mundo afora. Aí é relatado também a luta contra o câncer e, contra a ditadura, para poder fazer a cirurgia aqui no Brasil.

Segue descrevendo o seu mundo pós Anistia e a volta à atividade política, junto com Brizola, no trabalhismo, já no PDT, depois das urdidas de Golbery e Ivete Vargas no confisco da sigla do PTB, a grande sigla histórica. Aí entram as suas concepções de escola para o povo brasileiro com os CIEPS, as escolas de tempo integral, a organização dos espaços de festa do povo, com a construção do sambódromo, na verdade, segundo ele, um escolódromo, a sua candidatura para governador e a derrota para o Plano Cruzado e a sua eleição para o Senado.

Quem pensou que aí chegou ao fim, se depara com mais dois capítulos, cheios de sonhos, de esperanças e de poesia. Ele se abre para o mundo de seus gozos e privações e sobre louvações e dengos que recebeu. É esperança e poesia pura. Aí narra a sua infindável paixão pelas mulheres e as relações que com elas teve. Termina falando dos amigos, que obviamente não poderiam ficar de fora. Foram muitos. Posso dizer sem nenhum medo de errar. Um dos melhores livros de memórias que já li.

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