quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A Caatinga. Seara Vermelha. Jorge Amado.

Este é Jorge Amado. Vejam a descrição que ele faz da caatinga nordestina. Este é o cenário percorrido por milhares de nordestinos no rumo ao paraíso inexistente em São Paulo. Só a saída do inferno nordestino, marcado pelo latifúndio e pelos coronéis, é que os tornava visionários de um paraíso. A natureza oferecia um cenário secundário, se formos levar em conta a capacidade que o ser humano tem para infernizar a vida de seus semelhantes. Somente os humanos são capazes de impor sofrimentos e torturas uns aos outros. Isto é absolutamente impossível no reino animal. Mas vamos ao relato.
Seara Vermelha. O grande drama dos retirantes nordestinos.

A Caatinga.

"Agreste e inóspita estende-se a caatinga. Os arbustos ralos elevam-se por léguas e léguas no sertão seco e bravio, como um deserto de espinhos. Cobras e lagartos arrastam-se por entre as pedras, sob o sol escaldante do meio-dia. São lagartos enormes, parecem sobrados do princípio do mundo, parados, sem expressão nos olhos fixos, como se fossem esculturas primitivas. São as cobras mais venenosas, a cascavel, e a jararacuçu, a jararaca e a coral. Silvam ao bulir dos galhos, ao saltar dos lagartos, ao calor do sol. Os espinhos se cruzam na caatinga, é o intransponível deserto, o coração inviolável do Nordeste, a seca, o espinho e o veneno, a carência de tudo, do mais rudimentar caminho, de qualquer árvore de boa sombra e de sugosa fruta. Apenas as umburanas se levantam, de quando em quando, quebrando a monotonia dos arbustos com a sua presença amiga e acolhedora. No mais são as palmatórias, as favelas, os mandacarus, os columbis, as quixabas, os croás, os xiquexiques, as coroas-de-padre, em meio a cuja rispidez surge, como uma visão de toda beleza, a flor de uma orquídea. Um emaranhado de espinhos, impossível de transpor. Por léguas e léguas, através de todo o Nordeste, o deserto da caatinga. Impossível de varar, sem estradas, sem caminho, sem picadas, sem comida e sem água, sem sombra e sem regatos. A caatinga nordestina.

E através da caatinga, cortando-a de todos os lados, viaja uma inumerável multidão de camponeses. São homens jogados fora da terra pelo latifúndio e pela seca, expulsos de suas casas, sem trabalho nas fazendas, que descem em busca de São Paulo, Eldorado daquelas imaginações. Vêem de todas as partes do Nordeste na viagem dos espantos, cortam a caatinga abrindo passo pelos espinhos, vencendo as cobras traiçoeiras, vencendo a sede e a fome, os pés calçados nas alpargatas de couro, as mãos rasgadas, os rostos feridos, os corações em desespero. São milhares e milhares se sucedendo sem parar. É uma viagem que há muito começou e ninguém sabe quando vai terminar porque todos os anos os colonos que perderam a terra, os trabalhadores explorados, as vítimas da seca e dos coronéis juntam seus trapos, seus filhos e suas últimas forças e iniciam a jornada. E enquanto eles descem em busca de Juazeiro ou de Montes Claros, sobem os que voltam, desiludidos, de São Paulo, e é difícil, se não impossível, descobrir qual é a maior miséria, se a dos que partem ou a dos que voltam. É a fome e a doença, os cadáveres vão ficando pelo caminho, estrumando a terra da caatinga, e mais viçosos nascem os mandacarus, maiores os espinhos para rasgar novas carnes dos sertanejos fugidos. Famílias numerosas iniciam a viagem e quando atingem Pirapora a doença e a fome os reduziu a menos da metade. Ouvem-se, nessas cidades que bordejam a caatinga, as mais incríveis histórias, sabe-se das desgraças mais tremendas, aquelas que nenhum romance poderia conter sem parecer absurdo. É a viagem que jamais termina, recomeçada sempre por homens que se assemelham aos que os precederam como a água de um copo à água de outro copo. São os mesmos rostos de indefinida cor, os pés gigantescos, de dedos abertos, sobrando das alpargatas, o cabelo ralo, o corpo magro e resistente. As mesmas mulheres sem beleza nas faces cansadas. Enchendo o deserto da caatinga com suas vidas desesperadas, com seus ais de dor, seu passo abrindo picadas que logo se fecham em espinhos.

A caatinga que os retirantes tinham que atravessar.

Aqui, na caatinga, habitam os cangaceiros. Os soldados da vingança, os donos do sertão. Não têm paz nem descanso, não têm quartel nem bivaques, não têm lar nem transporte. Sua casa é seu quartel, sua cama e sua mesa são a caatinga, para eles bem-amada. Os soldados da polícia que os perseguem não se atrevem a penetrar por entre os arbustos de espinhos, os pés de xiquexiques e croás. Ao lado das serpentes e dos lagartos, vivem os cangaceiros na caatinga, e também eles, por vezes, liquidam no tiro de suas repetições os sertanejos que descem e que sobem na contínua migração.

E aqui surgem, no coração seco da caatinga, os beatos mais famosos, aqueles que arrastam multidões dramáticas no seu passo, enchendo o sertão de orações estranhas, de ritos supersticiosos, anunciando pela boca repleta de profecias o fim do mundo e do sofrimento dos camponeses. Na caatinga habitaram Lucas da Feira, Antônio Silvino, Corisco e Lampião, hoje habita Lucas Arvoredo com seus jagunços. Na caatinga surgiram Antônio Conselheiro e o beato Lourenço. Do mais distante do deserto surge agora, com as mesmas alucinadas palavras de profecia o beato Estêvão.
Os retirantes sempre vislumbravam um claro sol depois da interminável caatinga. A fantástica capacidade da esperança.

Só os imigrantes são os mesmos, os nomes podem mudar, mas são idênticos rostos, a mesma fome, o mesmo fatalismo, a mesma decisão no caminhar. Atravessando a caatinga, sobre as pedras, os espinhos, as cobras, os lagartos, para frente, indo para São Paulo onde dizem que existe terra de graça, e dinheiro farto, voltando de São Paulo onde não existe nem terra nem dinheiro.

Lá vão eles, são centenas, são milhares, na viagem de espantos. Durante meses atravessam a caatinga. Os cadáveres vão ficando pelos caminhos improvisados e nem mesmo eles modificam a paisagem desolada onde, ao sol causticante, dormem indiferentes lagartos. Água só lá embaixo, onde termina a miséria da caatinga e começa a miséria do rio São Francisco". Seara vermelha, págs. 53-55.

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