quarta-feira, 9 de agosto de 2017

LER - COMPARTILHAR. Cláudia de Arruda Campos. Crônica militante.



Este é um dos textos que marca. A vontade de compartilhar. É aquela vontade de que mais gente leia aquilo que eu estou lendo. É um maravilhamento diante da leitura. É um forte fator de humanização. É um remédio contra a solidão. Terminaria dizendo que compartilhar leituras é uma espécie de dever ético. Este texto só poderia ser encontrado mesmo, num livro de abertura de crônica militante e de Lima Barreto. Que autor fantástico e comprometido com os seus.

A leitura também é remédio contra a timidez e ajuda a espantar a solidão, como nos diz Albert Jacquard em seu maravilhoso Filosofia para não filósofos: "Eu era certamente tímido, incapaz de me expressar, persuadido de que cada palavra pronunciada por mim seria falsa, obstruída pelo meu corpo, procurando refúgio na solidão, ao mesmo tempo que a achava dolorosa. Mas tive a sorte de povoar essa solidão com todos os autores encontrados nas prateleiras das biblioteca e que foram bastante amáveis comigo; nunca zombaram de mim, levaram-me a desejar contato com os seres de carne e osso, que são mais inquietantes, embora muito mais atraentes do que aqueles de quem só restam as palavras". E imaginar que Alberto Manguel lia para Borges, quando este foi atingido pela cegueira... Mas vamos ao brilhante texto de Cláudia de Arruda Campos.
Este livro tem duas apresentações que condizem com o livro. Ler - compartilhar e o que é uma crônica.
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Uma pessoa, um livro, o silêncio - esta é uma imagem clássica da leitura. Há séculos nossos olhos percorrem os textos sem que externamente nenhum som se manifeste. Mas no íntimo de quem lê, e no entorno da leitura, muitas vozes sussurram. A primeira de natureza física, é a do próprio leitor, que ouve internamente aquilo que lê em aparente silêncio.

Outras vozes, cuja presença nem sempre percebemos durante a leitura, são aquelas do diálogo constante entre o que diz o texto e as experiências do leitor: experiências de vida e de leitura. Se essa conversa falha ou empaca, empaca a leitura. Ou desistimos imediatamente do texto, achando que ele nada tem a ver com a gente, ou nos interrogamos: o que isso quer dizer? Se a dúvida for de alguma forma resolvida, se encontrarmos a ponte entre a informação nova e aquilo que somos ou aquilo que já sabemos, o contato prossegue.

Mais vozes: aquelas que nos levaram a determinado texto. Chegamos a uma obra por alguma referência: alguém nos falou dela; tínhamos lido algo a seu respeito, a respeito do autor, do tema, do personagem, do contexto cultural, histórico; ou apenas havíamos dado uma passada de olhos em algum trecho, ou na capa, e fomos chamados para dentro do livro.

Muitas vezes, leitura feita, a nossa voz se externa: temos o desejo de comentar com alguém. Como a pedra jogada na água, os círculos se expandem, ondas de vozes, levando e trazendo novas leituras.

Promover leitura passa por ajudar a perceber essas vozes e colocá-las em ação. Para isso pode haver bons exercícios, mas nada que supere nem dispense a única "técnica" imprescindível - o compartilhar. E esse compartilhamento pode se dar de várias formas, do comentário e sugestão de leituras até o ler com, ler junto, e mesmo o ler para alguém se, por algum motivo, essa pessoa não pode decifrar a letra ou as vozes do texto.

Ler com. Algumas imagens de leitura, que não a do isolamento, aparecem em quadros e gravuras antigas: duas pessoas leem juntas o mesmo livro. E essas imagens não passam a ideia de compartilhamento forçado, mas de calorosa intimidade. Duas ou mais pessoas lendo o mesmo texto, ainda que cada uma tenha seu próprio exemplar em mãos, parece esbater a frieza ou insegurança de que alguns se ressentem na leitura inteiramente individualizada. Ler, interromper, comentar, perguntar, rir ou se emocionar em companhia podem ser meios estimulantes para o melhor aproveitamento, seja de um texto envolvente, seja de um texto que requisite maior esforço.

Ler para. Outras imagens reforçam a ideia de compartilhamento: um adulto lê, ou conta histórias para a criança pequena; um círculo de pessoas, olhos e ouvidos ávidos dirigidos a um contador de histórias. As duas situações relacionam-se, geralmente, a estágios em que não se tem ainda acesso aos mistérios da escrita e nos quais a transmissão tem que se fazer pela oralidade.  Embora presas a um tempo superado, ou a ser superado para se chegar à leitura, essas situações têm alguma coisa a nos sugerir. O encantamento do ouvir pode, em certas situações, estimular o ler. Explica-se: a história narrada, o poema declamado, o discurso proferido, a aula, todas essas modalidades baseadas na comunicação oral, permitem que se vá processando a apropriação de formas, estruturas, tons, o reconhecimento de assuntos e gêneros. Isso é importante para que o leitor (ou futuro leitor) vá adquirindo segurança, sentindo pisar num terreno que não é inteiramente desconhecido. Daí talvez o fato de que a leitura em voz alta permita uma maior compreensão de um trecho mais difícil. O som das palavras nos torna familiar aquele mundo que nos é transmitido.

Qualquer das vozes que acompanham a leitura só se fixa em nós se a ouvimos e distinguimos verdadeiramente. Isso demanda tempo e atenção, que são sempre variáveis: cada leitor, assim como cada texto, tem um ritmo próprio. Promover leitura entendendo-a como um compartilhamento pressupõe o respeito pelos ritmos e a aceitação dos vários movimentos que ocorrem nessa prática, tais como divagar e voltar ao texto; perguntar-se e resolver; voltar atrás e reler; interromper e continuar.

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