domingo, 1 de abril de 2018

Carta a um jovem professor. Philippe Meirieu.

Sou ouvinte assíduo de rádio. Confesso que está ficando difícil. Os apresentadores, especialmente os seus âncoras, estão se descaracterizando dia a dia e, na mesma proporção, estão assumindo a fisionomia e a identidade das emissoras em que trabalham. Alguns estão até renunciando aos nomes próprios que construíram ao longo de toda uma vida.  Faço aqui uma honrosa e necessária exceção. Rosely Sayão e ao programa "Seus filhos", na Bandnews. Ela é a responsável por eu ter chegado a este livro. Creio que ao longo de toda a minha vida nunca comprei, um livro sequer, que me tenha sido indicado pela televisão.
Um livro perfeito para um verdadeiro debate sobre o trabalho pedagógico.

Mas vamos ao livro. Trata-se de Carta a um jovem professor, de Phillipe Meirieu, numa edição da artmed, 2009. Vou começar pela contracapa, que é uma mensagem direta ao leitor: "Você tem o desejo de transmitir e a paixão de ensinar. Foi para isso que você se tornou professor... ou vai se tornar. Não para se desgastar impondo disciplina. Não para sucumbir a reformas ministeriais contraditórias. Nem para tentar desesperadamente tapar as brechas de uma sociedade individualista. Assim, você se pergunta, às vezes, se não errou de ofício. Gostaria de convencê-lo que não é nada disso: não existe contradição entre seu projeto pessoal e as exigências da escola. Gostaria de lhe mostrar que você pode se dedicar plenamente à transmissão de saberes e, ao mesmo tempo, assumir a dimensão política do seu trabalho. Pois é no próprio cerne do ato de ensinar que se processa a educação do cidadão e que se constroi uma sociedade democrática.

Para os jovens professores e para todos aqueles que estão comprometidos com o futuro de nossa escola, procurei não evitar nenhuma pergunta e situar-me onde as tensões são mais agudas hoje".

Vamos continuar de forma invertida, buscando na conclusão, o relato da experiência do autor em sua vida profissional e na escrita do livro. Conta que no seu tempo, os professores eram marxistas, maoístas ou trotskistas. Quem não o era, era visto como "um reacionário irrecuperável". Desconfiou de todos, embora se preocupasse com o imperialismo americano e com a guerra do Vietnã. Mas eu, nos conta ele, "eu mantinha o mesmo apego a esse velho humanismo da tradição francesa que muitos de meus camaradas consideravam como 'um aliado objetivo do capital'.

Conta ainda por onde passou a sua formação, dizendo-se "nutrido pela leitura de Rousseau, mas também de Fourier e de Mounier" e que acreditava que a 'salvação' estaria mais na autogestão do que na ditadura do proletariado". E por aí vai relatando a sua trajetória de experiências.

O livro não é longo, tem apenas 93 páginas. Consta de uma introdução, sete capítulos, uma conclusão e uma entrevista com jovens professores. Na introdução versa sobre o ato de ensinar. Afirma que o 'ser professor é uma maneira particular de ser no mundo', é alguém enfronhado com a transmissão de saberes e estes necessitam ser  revestidos de significados. Não é um ofício de autômatos.

O capítulo primeiro tem por título - Não temos de escolher entre o amor aos alunos e o amor aos saberes. Versa sobre a centralidade do trabalho pedagógico, um trabalho de transmissão, de apresentação e acompanhamento da assimilação de saberes. Esta é a essência do ofício de professor. O título do segundo capítulo é simplesmente apaixonante - Nós ensinamos para que outros vivam a alegria de nossas próprias descobertas. Nele nos mostra que na origem da vocação do professor está sempre um encontro criador, quando nós mesmos enveredamos por caminhos que um dia nos foram abertos por um professor. Cada encontro com o aluno deve ser um ato criador, mas que para sê-lo, é necessária a superação de toda uma instituição burocrática na qual se transformou a escola, a máquina escola. Passa por toda uma análise das grandes dificuldades nesse processo.

A burocracia escolar continua a ser analisada ao longo do terceiro capítulo - Nosso projeto de transmitir não combina com as pressões sociais sobre a escola. Trata-se de um belo capítulo. A escola sempre deveria ter ideais elevados, deveria ser ser marcada pelo respeito aos saberes, sem facilitações e promoções automáticas. "A ajuda aos alunos é uma maneira de se esquivar da transmissão ou de concretizá-la no cotidiano"? nos interroga o autor. Trabalhar o mais próximo dos saberes dos alunos e centrar as atividades no projeto de ensinar e no ato de aprender, sempre deveria ser a centralidade da escola. No início do capítulo tem uma bela confissão de credo do professor, "nutrido de cristianismo social e de socialismo libertário". Este posicionamento é de fundamental importância para que a escola atenda os interesses da sociedade e não apenas os do mercado.

O quarto capítulo, que tem por título - Queremos ser eficazes, mas não em quaisquer condições, analisa modelos educacionais de diferentes países e os impactos que causam sobre os alunos. A eficiência passa necessariamente pela organização de situações de aprendizagem em que o essencial não será mais "o que eu vou dizer a eles" mas "o que é que eu vou pedir para eles fazerem". Podem ver aqui a presença da escola nova, centrada em atividades para a aprendizagem. Devemos também ter muito cuidado com as estatísticas oficiais pois a essência do trabalho pedagógico não é mensurável. Fala também de uma escola justa e cita uma frase extraordinária de François Dubet: "Uma escola justa, não pode acrescentar ao fracasso a humilhação".

Do quinto capítulo - No cerne do nosso ofício está a exigência, vou destacar algumas frases ou interrogações: "É preciso estar motivado para trabalhar ou trabalhar para ficar motivado"? "Fazer emergir a motivação no trabalho". "Iniciar um trabalho quando se apoia na motivação". "Não desprezar o que pode mobilizar os alunos... desde que se atenha firmemente à exigência da qualidade". "Dar um basta às hierarquias arbitrárias entre as disciplinas" e ainda "ser exigente consigo mesmo e com seus alunos".

Vou fazer o mesmo procedimento com relação ao sexto capítulo - Uma preocupação da qual não devemos nos envergonhar é a disciplina em sala de aula. "Hoje ninguém pode afirmar que não tem problema de disciplina". "O aluno reproduz na sala de aula a atitude que tem diante da televisão: ele fica mudando de canal". ""As mídias exaltam o infantil quando a escola tenta fazer a criança crescer". "Construir no cotidiano uma verdadeira disciplina escolar". "Preparar o material, estruturar o espaço e o tempo". "Sermos precisos e rigorosos nas instruções" e ainda, "organizar o trabalho, não a disciplina". Tem também uma frase memorável. É sobre a influência da televisão: "Jules Ferry queria livrar os espíritos da superstição e do obscurantismo por meio da escola... Mas nenhum filho de camponês bretão passava tanto tempo no catecismo, nos anos de 1905, quanto o filho de um burocrata passa diante da televisão, do rádio e da internet nos anos atuais". Pág. 74.

O gran finale, obviamente, está no sétimo e último capítulo - Qualquer que seja nosso estatuto, quaisquer que sejam nossas disciplinas de ensino somos todos "professores de escola". Nele são abordados os temas de natureza mais filosófica. A escola como instituição do encontro da alteridade; a escola como instituição da busca da verdade e a escola como instituição de uma sociedade democrática. Deixo mais algumas frases. "Todos os professores são 'instituidor' de humanidade" (aquele que institui a humanidade no homem), e a frase com a qual ele encerra o livro: "Você se tornará assim, ao mesmo tempo, um profissional da aprendizagem e um militante político - no sentido mais nobre do termo - engajado, no dia a dia, na construção de um mundo à altura do homem. Como professor de Escola, você será construtor de humanidade".

Tenho certeza dos meus limites na construção deste post. O livro é infinitamente superior à qualquer resenha que se possa dele fazer. E ainda sobra para uma provocação, para uma chamada à reflexão. Um poema de Rilke, que está na abertura do livro: "Você está olhando para fora, e é justamente o que não deveria fazer. - Ninguém pode aconselhá-lo nem ajudá-lo, ninguém. - Só existe um meio. Volte para dentro de si mesmo".

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