segunda-feira, 16 de setembro de 2019

13 de maio de 1958. A abolição vista por uma favelada. Carolina Maria de Jesus.

É impossível conhecer a realidade brasileira sem estudar profundamente o tema da escravidão. Estes estudos passam necessariamente por Joaquim Nabuco e o seu O abolicionismo. Dele tomo uma frase, que costumo citar à exaustão: "Não basta acabar com a escravidão; é preciso destruir com a obra da escravidão". Joaquim Nabuco tinha todo um projeto de integração do negro à nação brasileira, através da garantia de acesso à educação e à terra. E isso não ocorreu. Este acesso sempre lhes foi negado.

Passam também por Florestan Fernandes, de quem pinço a seguinte frase: "O negro prolonga, assim, o destino do escravo". Florestan nega as versões da cordialidade e da integração harmoniosa das raças na formação da sociedade brasileira e lamenta que esta integração em uma sociedade capitalista, competitiva, tenha se dado sem lhe proporcionar os devidos meios. Lembrando que esta integração, mesmo com os meios, já é difícil.

Atualmente ganham grande evidência os livros de Jessé Souza. Dou o título de dois de seus livros, para efeito de ilustração. A elite do atraso - da escravidão à Lava jato e A elite do atraso - Da escravidão a Bolsonaro. Percebam a ideia da permanência ou persistência. A escravidão, mais do que nunca, está presente na abolição dos direitos trabalhistas após o golpe de 2016. A flexibilização destes direitos é uma volta a um regime de escravidão sob o disfarce do trabalho livre.

Faço ainda uma referência ao belo e recente livro da Lília Schwarcz Sobre o autoritarismo brasileiro. O primeiro capítulo, o primeiro como símbolo de raiz de tudo, versa sobre escravidão e racismo. No livro também encontramos uma frase do Millôr Fernandes, profundamente enigmática e significativa: "O Brasil tem um enorme passado pela frente". Em outras palavras, não vislumbramos na construção do nosso futuro a abolição do passado, vislumbramos apenas a sua perpetuação.
O dia 13 de maio visto sob o olhar arguto de uma favela.

Mas o que me leva a este post é um testemunho. O dia da abolição visto pelos olhos de uma herdeira, uma mulher negra, mãe de três filhos, leitora e escritora, embora tivesse apenas o segundo ano primário, ainda que de forma incompleta. Carolina Maria de Jesus é uma trabalhadora livre. Livre para ganhar a sua vida e a de seus três filhos, catando papeis, ferros, estopas e outros lixos pela ruas da mais ricas das cidades brasileiras. A fome é a sua companheira mais constante. 

Por ser leitora, incentivada pela palavra de uma professora sua, tornou-se também escritora, relatando em diário a sua vida de sofrimentos. Do seu Quarto de despejo - diário de uma favelada tomo o depoimento relativo ao dia 13 de maio de 1958, dia 13 de maio, dia da abolição. Não farei qualquer interpretação, deixando para a sua análise a aguda percepção da ilustrada favelada. Mantenho a escrita original.

13 de maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da abolição. Dia em que comemoramos a libertação dos escravos.

... Nas prisões os negros eram os bodes espiatórios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.

Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair.

... Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer elas brada: - Viva a mamãe!

A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura a Dona Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim:

- "Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina."

... Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.

E assim no dia 13 de de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual - a fome.

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