domingo, 15 de setembro de 2019

Quarto de despejo. Diário de uma favelada. Carolina Maria de Jesus.

Quarto de despejo - diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, apareceu no ano de 1962. Naquele tempo, tempo de minha formação escolar, eu não podia nem pensar em comprar livros e, muito menos ainda, ter esta prática como um hábito. Me lembro perfeitamente da fama que o livro adquiriu. Só não sei precisar se isto ocorreu ainda nos anos 1960 ou já na década seguinte. Recentemente, verificando listas dos livros mais vendidos, lá estava o livro. Não tive dúvidas. Comprei e li.
Um dos maiores best-sellers da literatura brasileira.

Carolina Maria de Jesus adquiriu o hábito de escrever desde cedo. Assim fugia de seus problemas. "Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia. Tem pessoas que, quando estão nervosas, xingam ou pensam na morte como solução. Eu escrevia o meu diário". Coisas da psicanálise? Dois momentos são retratados: a segunda metade do ano de 1955 e, depois, ela salta para  o mês de maio de 1958, chegando até o primeiro de janeiro de 1960. A favela descrita é a favela do Canindé, hoje área nobre, depois da abertura das marginais do rio Tietê. Devia ser por ali onde hoje se encontra o estádio da Portuguesa e, naquele tempo, do São Paulo Futebol Clube.

O livro tem a sua história. Ela está ligada ao grande jornalista Audálio Dantas, sempre precursor do jornalismo ético brasileiro. Audálio tem o seu nome ligado às denúncias do bárbaro assassinato de Vladimir Herzog. Na ocasião era o presidente do Sindicato dos Jornalistas. Foi ele que, ao fazer uma reportagem sobre a vida dos favelados, fez a descoberta da escritora e encaminhou os seus escritos para se transformarem em livro e documentários. Antes eles foram reportagem em jornal e revista. Audálio prefacia o livro. O livro não passou despercebido por Manuel Bandeira. Lhe chamou atenção a sua peculiar linguagem: "Ninguém poderia inventar aquela linguagem, aquele dizer as coisas com extraordinária força criativa mas típico de quem ficou a meio caminho da instrução primária". 

No período relatado Carolina ganhava ou sofria a vida catando papel, ferros, estopas e outros lixos recicláveis. Era mãe, sozinha, e três filhos para sustentar. João, Vera e José Carlos. A palavra mais constante no livro é a palavra fome e os sofrimentos dela decorrentes. Já os problemas mais constantes são os das brigas, da ausência de solidariedade, dos desajustes familiares, da presença do álcool, da falta de saneamento, problemas com a água (a fila para uma única torneira) e a cobrança da energia elétrica, cobrada por cada bico de luz. Assim ela define a sua situação de favelada: "Devo incluir-me porque também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo". Outro tema constante é o suicídio e a falta de coragem para cometê-lo.

O diferencial de Carolina era a sua relação com o ler e o escrever. Vejam que bela referência: "Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem". Os políticos e a sua falta de sensibilidade também estão sempre presentes. Vejamos: "O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças".

O que ela escreve no dia 13 de maio de 1958, dia da abolição da escravidão, mas não da fome, eu deixo para um post especial. Também anotei temas que me marcaram: o medo do juizado de menores e dos abrigos em que estes poderiam ser recolhidos; a presença de padres e pastores e a pretensão de manter os favelados dentro dos princípios da moralidade, isto é, manterem-se submissos e conformados; a questão da moralidade sexual, a partir da aguda percepção de Carolina e a sua fala sobre o casamento, que dizia existir apenas para a mulher apanhar. Fala ainda que a voz do pobre não tinha poesia. Mas tinha.

Como símbolo do livro, do menosprezo pela favela, deixo um paralelo que ela traça entre os corvos e o ser humano. Dura realidade de tristeza e de vergonha profunda: "Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos". O diário escrito por Carolina está inserido na chamada literatura-verdade.

Na contracapa do livro lemos: "Ao ler este relato - verdadeiro best-seller no Brasil e no exterior -, você vai acompanhar o duro dia a dia de quem não tem amanhã. E vai perceber com tristeza que, mesmo tendo sido escrito na década de 1950, este livro jamais perdeu sua atualidade". É que, como dizia Millôr Fernandes; "O Brasil tem um enorme passado pela frente". 

E, finalmente, uma declaração da autora que deixo como mensagem para educadoras e educadores. É sobre o despertar de seu interesse pela literatura e de quem o despertou: "Seria uma deslealdade de minha parte não revelar que o meu amor pala literatura foi-me incutido por minha professora, dona Lanita Salvina, que aconselhava-me para eu ler e escrever tudo que surgisse em minha mente. E consultasse o dicionário quando ignorasse a origem de uma palavra. Que as pessoas instruídas vivem com mais facilidade".

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