quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Não verás país nenhum. Ignácio de Loyola Brandão.

Meio distante, sempre tive uma certa percepção de desconfiança com relação ao Ignácio de Loyla Brandão, que nada tinha a ver com o seu jesuítico nome. Com a revista Cult nº 245, de maio de 2019, essa minha percepção foi decifrada. Essa revista faz uma entrevista com o consagrado escritor e agora membro da Academia Brasileira de Letras e lhe pergunta sobre o seu posicionamento político e ele responde dessa forma:

"Não tenho partido, não sou de esquerda nem de direita, eu sou da tentativa de olhar em volta com lucidez. E de não aceitar imposições e dogmas. Não sou petista, mas estou de acordo com várias coisas do PT. Acho que o Lula fez um primeiro mandato muito bom. Porque eu estive no Nordeste e eu vi luz, vi uma série de coisas que não existiam, as pessoas com geladeira, televisão. Antes, tinham nem um pião. Então, sou um democrata, acho". Confesso que queria mais, tipo aquilo que transparece na sua literatura. Ao menos se confessar como um humanista.

A excelente entrevista da Cult me levou à leitura. Entre três livros, não verás país nenhum, zero e o seu dito preferido Dentes ao sol, optei pelo primeiro, especialmente, por ser uma distopia. Agora termino a sua leitura. Demorei mais do que o previsto. Não culpo o livro mas o mal estar que estamos vivendo. O livro distópico se transformou em realidade. Vejamos a resposta por ele dada à seguinte pergunta da entrevista: "Como você coloca  seus livros, em especial, Desta terra..., diante da realidade de hoje - a gente está se encaminhando para essa distopia toda"?
Edição da Global. 27ª edição - 4ª reimpressão, 2016

"A gente já está vivendo. A gente não tem um presidente sem cérebro? É ou não é o Bolsonaro? É um homem totalmente despreparado, totalmente sem cultura, totalmente sem escola, totalmente sem raciocínio. É igual aos meus presidentes em Desta terra... um tem doença, outro não tem cérebro, outro vive sem coração. Não existe mais anonimidade, a gente está sendo vigiado o tempo inteiro. Se for trepar, vão saber que está trepando, se for mijar, vão saber do mijo. Você é vigiado, fiscalizado. Não tem mais esse ser que se esconde. Você é coagido a consumir, compra coisas que não precisa...". No caso do não verás país nenhum, não há presidente, há o Esquema.

Daniel de Mesquita Benevides, o entrevistador da revista, assim abre o seu belo trabalho: "Se os grandes artistas são antenas que captam o espírito da época e iluminam suas complexidades nos mais diversos recônditos, Ignácio de Loyla Brandão foi um pouco além ao "prever" a figura de Bolsonaro, décadas antes. Em seu livro Não verás país nenhum, de 1982 (?), há um capitão ligado a "milícias" que carrega parte do intestino numa bolsa atada à cintura. O romance mostra um futuro próximo em que a Amazônia virou um deserto, cientistas são perseguidos e não há água potável - as pessoas têm de reciclar a própria urina para beber". 

No caso acima, Souza, o personagem principal, é um professor perseguido, casado com Adelaide, e o capitão civiltar é o seu sobrinho. Além dos civiltares existem também os miltecnos, os alimentos factícios e as empresas multiinternacionais. A distopia mostra as perdas progressivas do professor Souza. Perdas é uma palavra boa. Perdeu amigos, esposa, casa. Ganhou despersonalização e a vida debaixo de uma enorme marquise.

Creio que estes dados são suficientes para contextualizar a obra, lembrando que o livro é de novembro de 1981, editado pela Codecri, como lemos na página da catalogação do livro, que já está na 27ª edição (Global - 2008) - 4ª reimpressão (2016). O livro, como consta na contracapa, continua sendo vendido como se fosse um lançamento. Recentemente o escritor entrou na Academia Brasileira de Letras, através de uma escolha unânime. 

Na contracapa temos a seguinte apresentação do livro: "Um dia teremos de comprar nos shoppings cheiros da natureza, das plantas e das flores, da chuva e da terra molhada. O que dizer de um romance que tem 20 anos e continua a ser vendido como se tivesse sido lançado agora, pela sua atualidade? Ele fala do futuro que já está acontecendo. Romance policial, de aventuras, de amor. Ficção científica, documento sobre o meio ambiente. Um livro novo, inclassificável, daqueles raros que nos entretêm e fazem pensar.

De ação e reflexão, suspense (o que vai acontecer conosco?), amor (Elisa, mulher livre, é a nova forma do amor?) - (Considero essa descrição sobre sexo sem remorso e sem a questão da responsabilidade como uma das mais belas passagens do livro) - de questionamentos (Adelaide será a nova mulher?), de esperanças (Souza simboliza o último homem indignado contra a destruição de nós mesmos?). Leve humor e ironia profunda permeiam este livro em meio a uma atmosfera sufocante".

Washington Novaes faz uma pequena apresentação do livro, com um título muito apropriado: "Sufocados pela realidade". Nela ele conclui: "E neste livro, daquele ano, volta e meia o leitor tem de dizer a si mesmo "É ficção!", para não ser engolido e sufocado pelas realidades de hoje e pelas alegorias que povoam as páginas. É um livro captado por antenas de alta sensibilidade. Por isso é tão atual, tão lido - fora o estilo, que são outros quinhentos".

A nota introdutória é de 2008. E o que dizer de sua tualidade, hoje, 2019, em tempos de bozos, moros, guedes, damares, weitraubs, araújos, ratos e outros similares?

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