terça-feira, 5 de novembro de 2019

A classe média brasileira e suas frações. Jessé Souza - A elite do atraso.

No novo livro de Jessé Souza, A elite do atraso - Da escravidão a Bolsonaro, o autor apresenta uma pesquisa em que mostra a classe média brasileira e as suas diferentes frações. Por ser inédito, resolvi apresentar uma pequena síntese, no intuito de atiçar a curiosidade para a leitura do livro e, em particular, o capítulo a respeito. O tema da classe média é constante nos livros de Jessé.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/11/a-elite-do-atraso-da-escravidao.html 

A tese principal de A elite do atraso - da escravidão a Bolsonaro é a de que a elite brasileira, após a derrota para uma sub elite regional, em 1930, fez com que ela celebrasse um pacto com a classe média para se manter no poder para sempre. O mecanismo desse pacto foi a criação de meios simbólicos de dominação, com a invenção e a difusão de interpretações de Brasil, que conspirassem contra o povo pobre, que deveria ser mantido sob o tacão e os estigmas da escravidão. Esse saber seria criado na universidade e a sua difusão se daria pelas editoras e pela mídia. Assim foi criado um saber colonizado com as teorias do vira-latismo brasileiro, amplamente difundido pelos meios de comunicação que explicaria os entraves para o nosso desenvolvimento. Jessé contra-argumenta, situando essas travas na escravidão, sempre perpetuada e nunca verdadeiramente abolida.

 O mais recente livro de Jessé Souza. Sempre a classe média.

A classe média brasileira, que teve uma rápida formação no Brasil, especialmente após 1930, tem as suas especificidades, embora preserve profundas semelhanças. Depois da análise histórica dessa formação, já na parte final do capítulo sobre as classes sociais no Brasil moderno, ele mostra as suas diferentes frações. Assim as apresenta: "Os quatro nichos ou frações de classe que reconstruímos a partir desse trabalho ainda em andamento se referem às que denominamos como fração protofascista, fração liberal, fração expressivista - que costumo apelidar de "classe média de Oslo - e a menor delas, a fração crítica". Todos os dados desse post são retirados das páginas 184 a 189 do livro. Vamos a números e caracterizações.

Primeiro os números: "Em termos quantitativos, a fração liberal é a maior, com cerca de 35% do total, seguida pela fração protofascista, com cerca de 30%. Os 35% restantes compõem aquilo que poderíamos chamar de classe média com mais alto capital cultural, ou capital cultural reflexivo [...] Cerca de 60% dessa casse média mais instruída - ou 20% do total de toda a classe média - forma aquilo que podemos  chamar de fração expressivista [...] Na outra ponta desses 35% de maior capital cultural comparativo, temos a menor fração entre todas, que é a fração que denomino crítica. Ela perfaz 15% do total da classe média". Temos assim 35% de liberais, 30% de protofascistas, 20% de expressivistas e 15% de críticos.

Vamos à caracterização. Jessé analisa a facção dominante de liberais e protofascistas, inicialmente, sem separá-los, para ao final diferenciá-los com a profundidade necessária: "Essa é a classe média tradicional do conhecimento técnico, ou seja, daquele tipo de conhecimento que serve diretamente às necessidades do capital e de sua reprodução e tem menor contribuição para uma transformação da própria personalidade. Esta inclusive, a própria personalidade, não é vista como um processo de descoberta e criação. O distanciamento em relação a si mesmo e o distanciamento reflexivo em relação á sociedade exigem pressupostos improváveis. Daí que sejam raros, mesmo na classe média privilegiada". Continuo pela importância dessa descrição.

"Para que se perceba a vida como invenção, é necessário saber conviver com a incerteza e a dúvida, duas das coisas que a personalidade tradicional e adaptativa mais odeia. A convivência com a dúvida é afetivamente arriscada e demanda enorme energia pessoal. O maior desafio aqui não é simplesmente cognitivo, mas de natureza emocional. Procura-se, para evitar a incerteza e o risco, a segurança das certezas compartilhadas. São elas que dão a sensação de tranquilidade e certeza da própria justeza e correção. Andar na corrente de opinião dominante com a maioria das outras pessoas confere a sensação de que o mundo social compartilhado é sua casa". E continua.

"Essas são as frações da sociedade mais suscetíveis à imprensa e a seu papel de articular e homogeneizar um discurso dominante para além das idiossincrasias individuais. O que a grande empresa de imprensa vende a seu público cativo é essa tranquilidade das certezas fáceis, tornando o moralismo cínico da imprensa - que nunca tematiza seu próprio papel nos esquemas de corrupção - o arranjo de manipulação política perfeito para esses estratos sociais. É esse compartilhamento afetivo e emocional, já advindo da força da socialização familiar anterior, que faz com que essas pessoas procurem o tipo de capital cultural mais afirmativo da ordem social. Nele, o capataz da elite, que ajuda a reproduzir na realidade cotidiana todos os próprios privilégios, está em casa".

Uma diferenciação entre o protofascista e o liberal: "O moralismo é muito diferente. Ele pula todas as etapas arriscadas e incertas e abraça só o produto fácil, vendido a baixo custo pela mídia e pela indústria cultural construída para satisfazer esse tipo de consumidor: a boa consciência das certezas compartilhadas. É nesse terreno que o liberal se afasta do protofascista. Para o liberal, os rituais da convivência democrática são constitutivos, ainda que possa ser convencido das necessidades de exceções no contexto democrático.

O protofascista, que, na verdade, se espraia da classe média para setores significativos das classes populares, é bem diferente. O golpe lhe trouxe o mundo onde pode expressar legitimamente seu ódio e seu ressentimento. O ódio às classes populares é aqui aberto e proclamado com orgulho, como expressão de ousadia ou sinceridade. O protofascista se orgulha de não ser falso como os outros e poder dizer o que lhe vem à mente [...] Como nunca aprendeu a se criticar, o protofascista tem uma sensibilidade à flor da pele e qualquer crítica aciona uma reação potencialmente violenta. [...] Essa banalidade do mal não existia entre nós. Ela foi criação midiática, ainda que ninguém na Rede Globo ou nas outras mídias, agora, queira assumir a responsabilidade pelo que fez".

Mas vamos falar dos 20% de expressivistas: "Mais importante ainda, pode-se agora ser expressivista sem qualquer crítica social que envolva efetiva distribuição de riqueza e poder. Expressivismo, também em país de maioria pobre como o nosso, passa a ser a preservação das matas, o respeito às minorias identitárias e temas como a sustentabilidade e responsabilidade social de empresas. [...] Esses temas são, na verdade, fundamentais. [...] Em um país onde tantos levam uma vida miserável e indigna deste nome, a superação da miséria de tantos é a luta primeira e mais importante. [...] Tudo se dá como se esse pessoal "bem intencionado" morasse em Oslo, e não no Brasil, e tivesse apenas relações com seus amigos de Copenhage e Estocolmo. Para um sueco que efetivamente resolveu os problemas centrais de injustiça social e distribuição de riquezas, não é estranho que se dedique à preservação de espécies raras e faça dessa luta sua atuação política principal. Que um brasileiro faça o mesmo e se esqueça da sorte de tantos seres humanos tão perto dele é apenas compreensível se ele os torna invisíveis. Por conta disso, decidi chamar essa fração de "classe média de Oslo". Ela é fundamental para que possamos compreender o Brasil moderno". E continua.

"Os eleitores da candidata Marina Silva são exemplos clássicos desse tipo de classe média". Aí eu paro. Essa caracterização é absolutamente suficiente para compreendê-la. Vamos aos 15% restantes, os denominados "críticos".

"O que faz com que eu a denomine de crítica não é nenhuma tomada de posição particular, mas sim, uma atitude singular em  relação ao mundo. O mundo social é percebido como algo construído, o que enseja também uma atitude mais ativa em relação a ele. Essa atitude básica se contrapõe à percepção do mundo como dado, como uma natureza sob outra forma, em relação à qual é preciso se adaptar. A forma de adaptação mais comum é se sentir pertencente a correntes dominantes de opinião. A pequena fração crítica tem que navegar em mares turvos, já que está em luta constante contra a corrente dominante. Ela mostra a dificuldade de se chegar a formas de liberdade pessoal e social e de autonomia real no contexto de uma sociedade perversa e repressiva. Por conta disso, ela também é prenhe de contradições, como todas as outras frações".

Na parte final  ele apresenta exemplos, por citações, de como cada fração dessa classe média percebeu as interpretações do vira-latismo brasileiro. Deltan Dallagnol representa os protofascistas, o ministro Barroso, os liberais e Fernando Haddad, apresentado como um intelectual refinado, a fração crítica.

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