domingo, 12 de abril de 2020

O crime do padre Amaro. Cenas da vida devota. Eça de Queirós. Vestibular UERJ.

Mais uma vez chego a um livro pelas indicações ao vestibular. Desta vez foi a indicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a UERJ. O livro, O crime do padre Amaro, que segundo uma observação ao final do livro, num apêndice, afirma que teve um subtítulo - Cenas da vida devota. Nada mais apropriado. A vida devota da cidade de Leiria. O autor, Eça de Queirós. Os personagens? O padre Amaro, Amélia, a mais bela moça da cidade, os acontecimentos na casa da S. Joaneira e o clero, ah, o clero! Além de outros.
O livro da Martin Claret. A primeira edição é de 1876 e teve uma recepção ruidosa.

Um livro ácido, um livro dentro do realismo/naturalismo que tomou conta do mundo literário a partir da segunda metade do século XIX. Este dado é fundamental para a compreensão e o entendimento da obre e de todo um movimento histórico e literário que insiste em ser novo e que, no entanto, em Portugal, insiste em ser velho. Eça pregava a crença de que a literatura deveria ser um instrumento da mudança social. Cedo participou da Questão Coimbrã. Realizou uma das famosas palestras realizadas em 1871. Nela afirmou: "O romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos - para conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenarmos o que houve de mau na sociedade".

No último capítulo do livro, o de número vinte e cinco, o cenário não é mais a interiorana Leiria, mas Lisboa. Lá, uma multidão se concentra em torno das novidades de Paris, onde, segundo o conde de Ribamar, meia dúzia de bandidos estavam a destruir a cidade. Era a Comuna, o primeiro comando da cidade, na mão de trabalhadores. Os interlocutores eram o conde de Ribamar, o padre Amaro, seu protegido desde a infância e o cônego Dias, o mestre do padre Amaro. 

Por falar no cônego Dias, ele é um dos três padres de Leiria, que formam, o que eu chamaria, o trio da perversão, ou o retrato do clero português da época: o padre Amaro, o cônego Dias e o padre Natário. Cada um deles assume momentos de protagonismo. Ora será Natário, ora o mestre cônego Dias e ao final o grande protagonista será mesmo o personagem do título, o padre Amaro, a consumar o seu horrível crime. Eça chegou a morar na cidade para melhor investigar a realidade dos fatos. Não é, portanto, obra de ficção.

Entre todas as suas perversidades, eu anotei aquela, que segundo a minha percepção, é a maior de todas. Está no capítulo XX, à página 326, numa discussão entre o padre Amaro e o cônego Dias, cada um com as suas imoralidades. Amaro responde ao cônego, após ser chamado de traste: "Traste por quê? Diga-me lá! Traste por quê. Temos ambos culpa no cartório, eis aí está. E olhe que eu não fui perguntar, nem peitar a Totó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escola e para o sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor faz aquilo, os outros fazem o que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se à velha, eu que sou novo arranjo-me com a pequena. É triste mas que quer? É a natureza que manda. Somos homens. E como sacerdotes, para a honra da classe, o que temos é que fazer costas!".

Ah, Nietzsche! A moral dos fortes e a moral dos fracos! A moral dos senhores e a moral dos escravos! Mas não pensem que o amor com a pequena foi o crime do padre Amaro. Isto era do consuetudinário dos padres. Quem usa a moral apenas para a escola e para os sermões é capaz de fazer qualquer coisa, até a praticar "o crime do padre Amaro". Outra coisa, já naquele tempo, igual ao tempos de hoje, eles se confessavam e se auto denominavam como "as pessoas de bem". A diferença é a de que isso hoje está na boca dos políticos corruptos (Me permitam uma perguntinha regional,  incômoda aqui do Paraná: Não é mesmo, governador Beto Richa?). Mas a história também tem outros personagens como João Eduardo, as velhas beatas, o tio Esguelhas, a entravada Totó. Tem até um padre bom, que age segundo os ditames do Concílio de Trento, o abade Ferrão.

Um pouco sobre Amaro. Desde criança é prometido à vida eclesiástica. Terá na pessoa do conde de Ribamar o seu protetor. Usará de sua influência para conseguir uma boa paróquia, a de Leiria e lá chegando "é hospedado na casa de S. Joaneira, mãe de Amélia, e esta é a mais bela jovem da cidade. É destinado a ele o quarto localizado exatamente abaixo dos cômodos da garota: à noite, ouvi-la se despindo ou arrastando as saias de um lado para o outro é um convite a toda forma de pensamento obsceno. Além disso, todas as noites, as beatas e os párocos se reúnem em tal residência para jantares fartos, jogos de cartas e mexericos a respeito da vizinhança - assim, Amaro familiariza-se tanto com o cenário que o ronda como com Amélia.

O noivo dela não é obstáculo para o padre, que arde em desejo pela garota...." É o que lemos no apêndice, em comentário sobre o livro. Não costumo opinar sobre a indicação dos livros. Faço uma exceção a este. Uma grande escolha. Uma escolha que vai para muito além do livro. Que entra em todos os meandros da literatura, em suas escolas, confrontando romantismo, realismo e naturalismo. Que entra profundamente na história e na sociologia, nas grandes transformações do mundo a partir das grandes revoluções como a Francesa e a Industrial e para os fenômenos decorrentes da urbanização. Um mundo em ebulição, do qual Eça será um ativo e engajado participante. Para ele a literatura deve exercer um importante papel social. E... Portugal em meio a todas essas transformações. É o retrato que nos mostra o maior nome da literatura portuguesa, antes, ressalve-se, de José Saramago. Dele, ainda me falta ler - A ilustre casa de Ramires, e uma boa biografia sua.


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