segunda-feira, 6 de abril de 2020

O Seminarista. Bernardo Guimarães.

"Já que assim o consideram os homens - murmurava consigo -, já que assim o ordena a sanha irresistível do destino, assim seja; serei um padre sacrílego, um padre infame, como tantos outros, que todos os dias profanam com mãos impuras os vasos do altar e a hóstia sacrossanta. Era essa a sina fatal que desde o começo estava fadada... Margarida não morre... O que a atormenta não é mais do que uma deplorável apreensão... O céu não quis que eu fosse seu esposo, o inferno me fez seu... que horror, meu Deus! que abominável sacrilégio! mas... já agora que hei eu de fazer... caí até o fundo do abismo, donde nunca mais poderei levantar-me. Ah, celibato!... terrível celibato!... ninguém espere afrontar impunemente as leis da natureza! tarde ou cedo elas tem seu complemento indeclinável, e vingam-se cruelmente dos que pretendem subtrair-se ao seu império fatal!..."
A primeira edição de O seminarista apareceu no ano de 1872.

Essa assertiva faz parte do capítulo XXIV, o capítulo final do livro O seminarista, do consagrado escritor do romantismo brasileiro, Bernardo Guimarães. Sem querer dar as pistas dos meandros do romance, cito essa parte final para dar as razões, as finalidades da escrita desse romance. A luta contra o celibato, o impedimento canônico que separa o amor da devoção sacerdotal.

Creio ser interessante começar a resenha mostrando um pouco do seu autor, situando-o no tempo e no espaço. Bernardo Guimarães é mineiro de Ouro Preto, nascido nos idos de 1825. Formou-se em Direito na cidade de São Paulo. Percorreu várias cidades do interior mineiro e goiano. Morou também no Rio de Janeiro, vindo a falecer em Ouro Preto, em 1884. A primeira impressão de O Seminarista é do ano de 1872. São os tempos da "Questão religiosa". Teria esta questão influenciado a sua obra?

Vamos ao romance. No interior de Minas, na pequena Tamanduá, morava seu Antunes, sua senhora e o menino Eugênio. Entre os agregados, Umbelina e a filha Margarida. As relações entre eles eram ótimas e, entre Eugênio e Margarida nasceu uma grande afeição. As crianças cresceram como se fossem irmãos. Eugênio fora prometido pelos pais à vida sacerdotal. A amizade entre as crianças, dia a dia, se tornava maior. Eis os personagens ou a matéria prima do romance.

Eu vivi o drama da promessa da vida sacerdotal. "Família que não tem um filho padre, dificilmente os pais irão para o céu", dizia o padre vigário. Não haviam rezado o suficiente. Eu era o mais novo entre cinco irmãos. A mim cabia, portanto, a salvação de meus pais, já que nenhum dos meus irmãos se dispôs para essa tarefa. Não tive amores de infância como teve o Eugênio. Mas não fiquei imune às milhares de contradições da vida no seminário. Eu e as minhas dúvidas fomos longe. A falta de coragem era grande e eu empurrava a tomada de decisão. Esta veio com o término do curso de filosofia e o início da teologia. Meus pais quase infartaram. O que mais me apavorava era a falta de autonomia. Um dos padres superiores nos alertava: "Vocês pertencem a maior instituição do mundo e é ela que pensa por vocês". Depois a vida, ou o tempo, foi ajeitando as coisas.

Bem, voltamos ao romance. Uma obra do romantismo. Que força de descrição. O regionalismo aparece forte. Há uma bela narrativa do que se chama de "mutirão". Trabalho de auxílio mútuo e, depois do trabalho, festa. Grande destaque também merece a imaginação e a condução do enredo. O óbvio nem sempre se dá. Você fica preso à leitura. Margarida, como costuma acontecer com as figuras femininas do romantismo, é uma menina linda, singela, cativante e sedutora. Fica fácil de imaginar o enlevo. Eugênio é mais vacilão. Não querendo contrariar ninguém, nem padres, pais e muito menos Margarida, vai empurrando decisões. Gostaria de chamar atenção para um detalhe que permeia todo o romance: uma serpente que enleia Margarida, quando ela ainda era bebê. A serpente tem muita força no imaginário cristão.

O imaginário dos padres também é muito forte quando se trata de argumentação. Haja inventividade e haja distorções. Os mais nobres dos sentimentos humanos são facilmente transformados em ardis de Satanás. Haja também espaço para o ascetismo, para jejuns, penitências e alucinações. E haja  também perversidade. A mentira é uma onipresença no romance. E esta, faz tomar decisões que alteram destinos. Li, num comentário, que no romantismo sempre tem um personagem do mal. No caso, seria Luciano, um pretendente abusado de Margarida. Mas ele é fichinha perto do seu Antunes e das tramas e ardis dos padres para manter Eugênio no seminário. Ah, o demônio é poderoso. Ao final, um conselho. Leiam, o desfecho é dramático.

O exemplar de O Seminarista que eu li é da Martin Claret. Integra a coleção "A obra-prima de cada autor". Não sei se esta é realmente a obra prima do autor. Sei que A escrava Isaura é a mais conhecida e é posterior a O Seminarista. No romance, os destinos de Eugênio estão em aberto, mas com certeza, o seminário deve ter deixado reflexos profundos ao longo de sua, certamente, desventurada vida. Devo ainda dizer que este romance é mais condizente com a realidade do que O seminarista idealizado por Rubem Fonseca.



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