sábado, 19 de setembro de 2020

História do cristianismo. Parte 3. A tentativa de organização germânica. Jacques Le Goff.

 Em 2018, sob inspiração e coordenação do professor Sebastião Donizete Santarosa, participei de um curso que denominamos de "Formação do pensamento Ocidental". Como o cristianismo é um dos componentes fundamentais desse pensamento ou cultura, o tema foi trabalhado. Buscamos, na época, mais os seus momentos fundadores e, dois textos foram trabalhados mais especificamente. O primeiro, de Paul Johnson, sobre o que se poderia chamar de ato fundador, retirado de seu belo livro História do cristianismo, em que relata o Concílio de Jerusalém, sob o comando do apóstolo Paulo. Dou o link: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/05/historia-do-cristianismo-parte-um.html O segundo texto foi retirado de outro belo livro Uma história da leitura, de Alberto Manguel e que versa sobre o Edito de Milão e o Concílio de Niceia, quando o cristianismo se transformou em religião oficial. Também dou o link: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/05/o-edito-de-milao-e-o-concilio-de-niceia.html

Agora, retomando o tema em um grupo mais restrito, por uma espécie de diletantismo, insiro no blog um terceiro texto, do livro do medievalista Jacques Le Goff A civilização do ocidente medieval, onde se mostra como o cristianismo praticamente se torna a religião de toda a Europa sob o império de Carlos Magno. Do livro, tomo da sua parte I, o início do capítulo 2, sob o título: "A tentativa de organização germânica (séculos 8º - 10º). Essa primeira parte do livro tem por título "Do mundo antigo à cristandade medieval. Vamos ao texto de Le Goff: "O Ocidente Carolíngio":

A civilização do Ocidente Medieval. EDUSC. 2005. Tradução de José Rivair de Macedo.

"A retomada inscreveu-se, em primeiro lugar, no espaço. A reconstituição da unidade ocidental pelos Carolíngios realizou-se em três direções: para o sudeste, na Itália; para o sudoeste, rumo à Espanha; e no leste, na Germânia.

Aliado do papa, Pepino o Breve introduz a política carolíngia na Itália, conduzindo uma primeira expedição contra os Lombardos em 754 e uma segunda em 756. Por fim Carlos Magno captura o rei Didier em Pavia no ano de 774, tomando-lhe a coroa da Itália, mas tem de lutar para se impor no norte da Península, e acaba perdendo os ducados lombardos de Spoleto e Benevento.

No sudoeste foi também Pepino quem deu o primeiro passo ao retomar Narbonne dos muçulmanos no ano de 759. Na lenda, entretanto, a reconquista da cidade estará ligada ao nome de Carlos Magno. Mais tarde, em 801, aproveitando-se das guerras internas dos muçulmanos, Carlos Magno tomará Barcelona. Foi então criada uma Marca da Espanha desde a Catalunha até Navarra, graças sobretudo ao conde Guilherme de Toulouse - que viria a se tornar o herói das canções de gesta do ciclo de Guilherme de Orange. Mas nem sempre os Carolíngios tiveram êxito na luta contra os muçulmanos e contra os povos pirenaicos. Em 778 Carlos Magno tomou Pampeluna mas não atacou Saragoça, tomou Huesca, Barcelona e Gerona e, abandonando Pampeluna depois de arrasá-la, retomou o caminho do norte. Montanheses bascos armaram uma emboscada contra a retaguarda dos Francos para apropriar-se de seus pertences. Em 15/8/778, no Desfiladeiro de Ronscesvales, os Bascos massacraram as tropas comandadas pelo senescal Eggiharde, o conde palatino Anselmo e o prefeito da Marca da Bretanha chamado Rolando. Os Anais Reais carolíngios não mencionam uma palavra a respeito da derrota; um dos compositores dos anais anota para 778: 'Neste ano o senhor rei Carlos foi à Espanha e sofreu um grande desastre'.  Os vencidos foram transformados em mártires e os seus nomes perpetuaram-se. A revanche dos francos foi La Chanson de Roland.

No leste, Carlos Magno deu início a uma tradição de conquista em que massacre e conversão misturavam-se - a cristianização pela força que a Idade Média iria praticar por muito tempo. Ao longo do Mar do Norte, de 772 a 803 os Saxões foram conquistados com muito custo, numa série de campanhas em que alternavam vitórias aparentes e revolta de pretensos vencidos - da qual a mais espetacular foi liderada por Widukind em 778. Ao desastre sofrido pelos Francos no Süntal seguiu-se uma repressão feroz: Carlos Magno mandou decapitar quatro mil e quinhentos revoltados em Verden.

Auxiliado por missionários - todo e qualquer ferimento cometido contra algum deles e toda ofensa à religião cristã eram punidos com a morte segundo uma capitular editada com o fim de ajudar a conquista -, e conduzindo ano após ano os guerreiros para o interior do território, batizando uns, pilhando outros, queimando, massacrando e efetuando deportações em massa, Carlos acabou por subjugar os Saxões. Bispados foram criados em Bremen, Münster, Paderborn, Verden e Minden.

O horizonte germânico, especialmente o Saxão, atraiu Carlos Magno para o leste. Ele trocou o Vale do Sena, em que os Merovíngios tinham se fixado em Paris e seus arredores, pelas regiões do Mosa, do Mosela e do Reno. Sempre itinerante, frequentava preferencialmente as cidades reais de Heristal, Thionville, Worms e sobretudo Nijmeegen, Ingelheim e Aix-la Chapelle, onde mandou construir três palácios. O de Aix ganhou certa preeminência devido ao tipo particular de sua arquitetura, o número de vezes que Carlos Magno lá esteve, e a importância dos acontecimentos de que foi palco.

A conquista da Baviera foi a de um território já cristianizado e que, teoricamente, era vassalo dos francos desde os tempos merovíngios.

A nova província bávara permanecia exposta às incursões dos Ávaros, povo de origem turco-mongol proveniente das estepes asiáticas, como os Hunos, e que ao dominar um certo número de povos eslavos criara um império que englobava as duas margens do Danúbio Médio, da Caríntia à Panônia. Saqueadores profissionais, tinham acumulado enorme butim de seus reides em seu quartel general que conservava ainda a forma redonda das tendas mongóis: o Ring. Este acabou nas mãos de Carlos Magno em 796, e o soberano Franco anexou a parte ocidental do Império ávaro - entre o Danúbio e o Drave.

Mas o Estado carolíngio mal tocara o mundo eslavo. Expedições conduzidas ao curso inferior do Elba e além, depois da conquista da Saxônia, tinham repelido ou englobado certas tribos eslavas. Com a vitória sobre os Ávaros, Eslovenos e Croatas passaram a fazer parte do mundo franco.

Carlos Magno lançou-se, enfim, contra os gregos. Mas este foi um conflito muito particular, cujo significado prende-se a um acontecimento que, em 800, conferiu novas dimensões à empresa carolíngia: a coroação do rei franco como imperador pelo papa em Roma.

O restabelecimento do Império no Ocidente não parece ter sido ideia carolíngia, mas sim pontifical. Carlos Magno tinha interesse de consagrar a divisão do antigo Império romano num Ocidente em que seria o chefe e num Oriente que não ousava disputar ao basileus bizantino, mas recusava-se reconhecer a este o título imperial que evocava uma unidade desaparecida.

Mas em 799 o papa Leão III viu uma tripla vantagem em dar a coroa imperial a Carlos Magno. Aprisionado e perseguido por seus inimigos em Roma, ele precisava ver sua autoridade restaurada de fato e de direito por qualquer um que pudesse impor autoridade a todos sem contestação: um imperador. Chefe de um Estado temporal, o Patrimônio de São Pedro, ele desejava ver esta soberania temporal corroborada por um rei superior a todos os demais - tanto em título quanto de fato. Enfim, junto com uma parte do clero romano, pensava em fazer de Carlos Magno um imperador para todo o mundo cristão, incluindo Bizâncio, a fim de lutar contra a heresia iconoclasta e de estabelecer a supremacia do pontífice romano sobre toda a Igreja. Carlos Magno se deixou convencer e coroar em 25/12/800. Mas só se defrontou com Bizâncio para obter reconhecimento de seu título e de sua igualdade. O acordo foi firmado em 814, alguns meses antes de sua morte. Os francos devolveram Veneza, mantendo as terras do norte do Adriático e o Basileus reconheceu o título imperial de Carlos Magno.

Carlos Magno teve a preocupação de administrar com eficácia este vasto espaço. Embora as determinações de governo fossem em geral orais, o uso da escrita veio a ser estimulado, e um dos principais objetivos do renascimento cultural de que se falará adiante foi o aperfeiçoamento profissional dos oficiais reais. Carlos Magno esforçou-se sobretudo para estender sua autoridade a todo reino franco aperfeiçoando os textos administrativos e legislativos e multiplicando enviados pessoais, quer dizer, representantes do poder central.

O instrumento escrito era constituído pelas capitulares ou ordenações, algumas particulares, destinadas a uma região, como as capitulares dos saxões, e outras gerais, como a capitular de Herstal (ou Heristal) sobre a reorganização do Estado (779), a capitular De Villis, sobre a administração dos domínios reais e a capitular De litteris colendis, sobre a reforma da instrução. O instrumento humano era constituído pelos missi dominici, pessoas importantes de proveniência laica ou eclesiástica enviadas anualmente para fiscalizar os representantes do soberano - condes e, nas fronteiras, marqueses ou duques - ou reorganizar a administração. Acima, os mais importantes membros da aristocracia eclesiástica e laica do reino reuniam-se anualmente, ao fim do inverno, numa Assembleia Geral com o soberano. Esta espécie de parlamento aristocrático - a palavra populus  que os designa não deve nos enganar - que garantia a Carlos Magno a obediência de seus súditos viria, ao contrário, impor a seus fracos sucessores a vontade dos grandes do reino.

Com efeito, no decurso do século 9º, a grandiosa construção carolíngia viria a se desorganizar rapidamente sob os golpes conjugados de inimigos externos - novos invasores - e de fatores internos de desagregação". LE GOFF, Jacques. A civilização do mundo ocidental. Florianópolis, Edusc. 2005. Páginas 43- 46.



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