terça-feira, 15 de maio de 2018

O Edito de Milão e o Concílio de Niceia. Alberto Manguel.

Este post tem como destinatários específicos os participantes do grupo de leituras formado por professores da Rede Estadual de Ensino do Paraná, que tem como objetivo estimular o exercício da leitura e a metabolização do conhecimento. Ao curso foi dado o nome de Formação do Pensamento Ocidental. Já lemos O Banquete e a Apologia de Sócrates, e este texto visa a leitura das Confissões de Santo Agostinho. Como usamos a História do Cristianismo, de Paul Johnson, para falar de São Paulo e do Concílio de Jerusalém, vamos agora, ampliar nossas fontes com Alberto Manguel, Uma história da leitura. Ele irá nos falar da afirmação do cristianismo com o Edito de Milão e com o Concílio de Niceia. Vamos ao texto de Manguel:
Um livro simplesmente maravilhoso. Dele tiramos este texto.

"No ano de 330, Flávio Valério Constantino, que a história lembraria como Constantino, o Grande, tendo derrotado seis anos antes o exército do imperador rival Licínio, afirmou sua posição de chefe do maior império do mundo mudando a capital das margens do Tibre para as margens do Bósforo, em Bizâncio. Para sublinhar o significado dessa mudança de margem, rebatizou a cidade de Nova Roma; a vaidade do imperador e a bajulação de seus cortesãos mudaram o nome novamente - para Constantinopla, a cidade de Constantino.

De modo a tornar a cidade adequada ao imperador, Constantino alargou a velha Bizâncio tanto física quanto espiritualmente. Sua língua era o grego; sua organização política era romana; sua religião - em grande medida graças à influência da mãe de Constantino, santa Helena - era cristã.  Criado em Nicomédia, no Império Romano do Oriente, na corte de Dioclesiano, Constantino familiarizara-se com boa parte da rica literatura latina da Roma clássica. No grego, sentia-se menos à vontade; quando mais tarde foi obrigado a fazer discursos em grego aos seus súditos, escrevia-os primeiro em latim e depois lia traduções preparadas por escravos cultos. A família de Constantino, originalmente da Ásia Menor, havia cultuado o sol como Apolo, o deus inconquistado, introduzido pelo imperador Aureliano como suprema divindade de Roma em 274. Foi do sol que Constantino recebeu uma visão da Cruz com o dístico in hoc vinces (Com isto serás vitorioso) antes de sua batalha contra Licínio; o símbolo da nova cidade de Constantino tornou-se a coroa com raios de sol, feita, assim se acreditava, com os pregos da Santa Cruz, que sua mãe desenterrara perto do morro do Calvário. Tão poderoso era o fulgor do deus Sol que, apenas dezessete anos após a morte de Constantino, a data do nascimento de Cristo - o Natal - foi transferida para o solstício de inverno - o nascimento do sol.

Em 313, Constantino e Licínio (com quem Constantino compartilhava então o império e a quem mais tarde trairia) encontraram-se em Milão para discutir "o bem-estar e a segurança do reino" e declararam, num edito famoso, que, "das coisas que são de proveito para toda a humanidade, a adoração a Deus deve ser justamente nossa primeira e principal preocupação, e é justo que cristãos e todos os outros tenham liberdade de seguir o tipo de religião que preferem". Com esse edito de Milão, Constantino eliminou oficialmente do Império Romano a perseguição aos cristãos, que até ali tinham sido considerados proscritos e traidores, recebendo a punição correspondente. Mas os perseguidos transformaram-se em perseguidores: para afirmar a autoridade da nova religião estatal, vários líderes da nova religião adotaram os métodos dos velhos inimigos. Em Alexandria, por exemplo, onde se supunha que a lendária Catarina fora martirizada pelo imperador Maximiliano numa roda circundada de pontas, em 361 o bispo em pessoa comandou o assalto ao templo de Mitra, o deus persa preferido pelos soldados e único competidor sério da religião de Cristo; em 391, o patriarca Teófilo pilhou o templo de Dionísio - o deus da fertilidade, cujo culto era celebrado em mistérios de grande sigilo - e incitou a multidão cristã a destruir a grande estátua do deus egípcio Serápis; em 415, o patriarca Cirilo ordenou a uma multidão de jovens cristãos que entrasse na casa da filósofa e matemática pagã Hipatia, arrastasse-a para a rua, esquartejasse-a e queimasse seus restos em praça pública. Deve-se dizer que o próprio Cirilo não era muito querido. Depois de sua morte, em 444, um dos bispos de Alexandria pronunciou o seguinte panegírico fúnebre: "Finalmente este homem odioso está morto. Sua partida traz júbilo aos que lhe sobrevivem, mas está destinada a atormentar os mortos. Eles não demorarão muito a se fartar dele, mandando-o de volta para nós. Portanto, ponha uma pedra bem pesada sobre seu túmulo, para que não corramos o risco de vê-lo novamente, mesmo como fantasma.
O grupo de leitura em um de seus encontros.

O cristianismo tornou-se, como religião da poderosa deusa egípcia Ísis ou do Mitra persa, uma religião da moda e na igreja cristã de Constantinopla, superada apenas pela de São Pedro em Roma, os devotos ricos iam e vinham entre os devotos pobres, desfilando uma tal quantidade de sedas e joias (nas quais histórias cristãs esmaltadas ou bordadas haviam substituído os mitos dos deuses pagãos) que são João Crisóstomo, patriarca da igreja, parava nos degraus e seguia-os com olhares de censura. Os ricos queixavam-se em vão; depois de transfixá-los com os olhos, o santo começou a fustigá-los com a língua, denunciando do púlpito seus excessos. Era indecente, trovejava com eloquência (o nome Crisóstomo significa 'língua de ouro") que um único nobre fosse dono de dez ou vinte casas e até 2 mil escravos, e possuísse portas esculpidas em marfim, chãos de mosaicos e móveis incrustados de pedras preciosas.

Mas o cristianismo estava longe de ser uma força política segura. Havia o perigo da Pérsia sassânida, que, antes uma nação de partos sem força, tornara-se um estado em expansão feroz e três séculos mais tarde conquistaria todo o Oriente romano. Havia  o perigo das heresias: os maniqueus, por exemplo, para quem o universo não era controlado por um deus onipotente, mas por dois poderes antagônicos, a exemplo dos cristãos tinham missionários e textos sagrados e estavam ganhando adeptos até no Turquestão e na China. Havia o perigo da dissensão política. Constâncio, o pai de Constantino, controlara apenas a parte oriental do Império Romano, e, nos recantos mais distantes do reino, havia administradores que estavam deixando de ser leais a Roma. Havia o problema da inflação alta, que Constantino piorou inundando o mercado com ouro apropriado dos templos pagãos. Havia os judeus, com seus livros e argumentos religiosos. E havia ainda os pagãos. Não era da tolerância pregada em seu próprio edito de Milão que Constantino precisava, mas de uma cristandade autoritária, rígida, sem evasivas, de longo alcance, com raízes profundas no passado e uma promessa inflexível para o futuro, estabelecida mediante poderes, leis e costumes terrenos para maior glória do imperador e Deus.

Em maio de 325, em Niceia, Constantino apresentou-se aos seus bispos como "o bispo das coisas externas" e declarou que suas recentes campanhas militares contra Licínio haviam sido "uma guerra contra o paganismo corrupto". Graças aos seus feitos, Constantino seria visto a partir de então como um líder sancionado pelo poder divino, um emissário da própria divindade. (Quando morreu, em 387, foi enterrado em Constantinopla ao lado dos cenotáfios dos doze apóstolos, isto implicando que ele se tornara um décimo terceiro póstumo. Após sua morte, foi geralmente representado na iconografia eclesiástica recebendo a coroa imperial das mãos de Deus.

Constantino percebeu que era necessário determinar a exclusividade da religião que escolhera para seu estado. Com tal propósito, decidiu brandir contra os pagãos os próprios herois deles. Na Sexta Feira Santa do mesmo ano 325, em Antióquia, dirigiu-se a uma congregação de seguidores cristãos, entre eles bispos e teólogos, e falou-lhes sobre o que chamou de "verdade eterna do cristianismo". À assembleia, que batizou de "Assembleia dos Santos", disse: "Meu desejo é derivar, mesmo de fontes externas, um testemunho da natureza divina de Cristo. Pois, diante de tal testemunho, é evidente que mesmo aqueles que blasfemam Seu nome deverão reconhecer que Ele é Deus e o Filho de Deus, se de fato acreditarem nas palavras daqueles cujos sentimentos coincidem com os deles próprios. Para provar isso, Constantino invocou a sibila Eritreia.

O imperador contou à plateia de que modo a Sibila, em tempos longínquos, fora entregue "pela insensatez de seus pais" ao serviço de Apolo, e de que modo, "no santuário de sua vã superstição", ela respondera às perguntas dos seguidores de Apolo. "Em certa ocasião, no entanto", explicou ele, a sibila "ficou realmente cheia de inspiração do alto e declarou em versos proféticos os propósitos futuros de Deus, indicando claramente o advento de Jesus pelas letras iniciais de uma série de versos, os quais formavam um acróstico com estas palavras: JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS, SALVADOR, CRUZ." Constantino então declamou o poema da sibila.

Magicamante, o poema (cuja tradução começa com "julgamento! Os poros exsudante da terra marcarão o dia") contém de fato o acróstico divino. Para refutar todo e qualquer cético, Constantino imediatamente admitiu a explicação óbvia: "que alguém professando nossa fé e não estranho à arte poética foi o autor desses versos". Mas descartou tal possibilidade: A verdade, porém, nesse caso, é evidente, uma vez que a diligência de nossos compatriotas fez um cômputo cuidadoso dos tempos, não havendo espaço para suspeitar que esse poema tenha sido composto depois do advento e condenação de Cristo".  Ademais, "Cícero conhecia esse poema, que traduziu para o latim e incorporou às suas próprias obras". Infelizmente, o trecho em que Cícero menciona a sibila - a de Cumes, não a de Eritreia - não contém referências nem aos versos nem ao acróstico, sendo na verdade uma refutação das previsões proféticas. Todavia essa maravilhosa revelação era tão conveniente que, durante muitos séculos, o mundo cristão aceitou a sibila entre seus antepassados. Santo Agostinho deu-lhe um lar entre os abençoados em sua Cidade de Deus. No final do século XII, os arquitetos da catedral de Laon esculpiram na fachada a sibila Eritreia (decapitada durante a Revolução Francesa) com suas tabuletas oraculares, no mesmo formato das de Moisés, e inscreveram a seus pés a segunda linha do poema apócrifo. E, quatrocentos anos depois, Michelangelo colocou-a no teto da capela Sistina, como uma das quatro sibilas que complementavam os profetas do Velho testamento.

A sibila era o oráculo pagão, e Constantino a fez falar em nome de Jesus Cristo. Em seguida o imperador voltou sua atenção para a poesia pagã e anunciou que o "príncipe dos poetas latinos" também fora inspirado por um Salvador que não poderia ter conhecido. Virgílio escrevera uma écloga em honra de seu patrono, Gaio Anísio Polião, fundador da primeira biblioteca pública de Roma; a écloga anunciava a chegada de uma nova idade de ouro, nascida sob o disfarce de um bebê:
Começa, doce menino! Com sorrisos tua mãe conhece
Quem carregou teu peso durante dez longos meses.
Nenhum pai mortal sorriu quando nasceste;
Alegria nupcial ou deleite  na Terra não conheceste.

Tradicionalmente, as profecias eram consideradas infalíveis; logo, era mais fácil mudar as circunstâncias históricas do que alterar as palavras da profecia. Um século antes, Ardachir, o primeiro rei sassânida, mudara a cronologia histórica para fazer uma profecia de Zoroastro beneficiar seu império. Zoroastro profetizara que o império e a religião persas seriam destruídos depois de mil anos. Ele vivera cerca de 250 anos antes de Alexandre, o Grande, que morrera 549 anos antes do reinado de Ardachir. Para acrescentar dois séculos à sua dinastia, o rei sassânida proclamou que havia começado a reinar quase 260 anos depois de Alexandre. Constantino não alterou a história, nem as palavras proféticas: mandou traduzir Virgílio para o grego, com uma licença poética elástica que serviu a seus propósitos políticos.

Constantino leu trechos do poema traduzido para sua plateia e tudo o que a Bíblia contava estava lá, nas palavras antigas de Virgílio: a Virgem, o esperado Messias, os eleitos, o Espírito Santo. Constantino escolheu discretamente esquecer aqueles trechos em que Virgílio mencionava os deuses pagãos, Apolo, Pã e Saturno. Personagens antigos que não podiam ser omitidos tornaram-se metáforas da vinda de Cristo. "Outra helena outras guerras criará,/Eo grande Aquiles apressa o destino de Troia", escrevera Virgílio. Isso, disse Constantino, era Cristo "fazendo guerra contra Troia, entendendo por Troia o próprio mundo". Em outros casos, explicou Constantino ao seu público, as referências eram estratagemas, com os quais Virgílio enganou as autoridades romanas. "Suponho", disse ele (e podemos imaginá-lo baixando a voz depois de declamar Virgílio), "que tenha sido consagrado pelo sentimento de perigo que ameaçava quem atacasse a credibilidade da antiga prática religiosa. Com cuidado, portanto, e com segurança, tanto quanto possível, ele apresentava a verdade àqueles que têm faculdades para entendê-la.

"Aqueles que têm faculdades para entendê-la": o texto tornou-se uma mensagem cifrada que só podia ser lida por uns poucos eleitos dotados das necessárias "faculdades". Não estava aberto a qualquer interpretação; para Constantino, somente uma leitura era a verdadeira, e desta, somente ele e seus companheiros de crença tinham a chave. O edito de Milão oferecera liberdade de fé a todos os cidadãos romanos: o Concílio de Niceia limitou essa liberdade àqueles que adotavam o credo de Constantino. Passados apenas doze anos, gente que ganhara em Milão o direito público de ler o que quisesse e como quisesse agora era informada, em Antióquia e Niceia, de que somente uma leitura  era verdadeira, sob pena de punição legal. Estipular uma leitura única para um texto religiosos era necessário, segundo a concepção de Constantino de um império unânime. Mais original e menos compreensível é a noção de uma única leitura ortodoxa para um texto secular como os poemas de Virgílio. MANGUEL. Alberto. Uma história da leitura. Companhia das Letras. São Paulo.2002. Páginas 230-236.
O monumental livro de Paul Johnson.


No livro de Paul Johnson, História do cristianismo, tema está na parte dois - De mártires a inquisidores, a partir da 83.

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