sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. Francisco de Oliveira.

O curso  "Educação, Sociedade e Sindicalismo", promovido pelo coletivo de formação da APP-Independente em parceria com o Nesef da UFPR, me levou a um novo ciclo de leituras da realidade brasileira, motivado por uma provocação feita pelo professor Gaudêncio Frigotto, na fala de abertura. O livro da vez, que foi explicitamente citado pelo professor Frigotto, foi Crítica à razão dualista - O ornitorrinco, do saudoso e notável professor Francisco de Oliveira. Os anteriores foram: Economia Política Brasileira, de Guido Mantega, Colapso do Populismo no Brasil, de Octavio Ianni, A Ideologia da Segurança Nacional, de Joseph Comblin e Educação como Prática da Liberdade, de Paulo Freire.

Os provocativos ensaios de Francisco de Oliveira sobre a realidade brasileira.

O livro é formado por ensaios, escritos em duas diferentes etapas. O primeiro foi escrito em 1972 e O Ornitorrinco, em julho de 2003. Em O Ornitorrinco, o professor examina a realidade social e econômica brasileira, trinta anos após os primeiros escritos, que abordam o mesmo tema. O ensaio é bastante complexo para leigos em assuntos de economia, mas de forma alguma é incompreensível. O professor Francisco de Oliveira faz uma crítica às teorias das interpretações tradicionais da economia política brasileira no ensaio de 1972. Ele explica a origem dos textos: "Esse ensaio foi escrito como uma tentativa de resposta às indagações de caráter interdisciplinar que se formulam no Cebrap acerca do processo de expansão socioeconômica do capitalismo no Brasil...". Apresento os títulos dos capítulos:

I. Uma breve colocação do problema; II. O desenvolvimento capitalista pós-anos 1930 e o processo de acumulação; III. Um intermezzo para a reflexão política: revolução burguesa e acumulação industrial no Brasil; IV. A aceleração do Plano de metas: as pré-condições da crise de 1964; V. A expansão pós-1964: nova revolução econômica burguesa ou progressão das contradições?; VI. Concentração da renda e realização da acumulação: as perspectivas críticas. O ensaio é acompanhado de tabelas ilustrativas, contendo os dados da acumulação.

Numa pequena síntese poderíamos dizer que Francisco de Oliveira apresenta as transformações da economia brasileira, ocorridas a partir de 1930, com as transformações promovidas pela passagem de uma economia agrária e exportadora para uma economia industrial e urbana. Todas essas transformações ocorreram sob o princípio da acumulação, sem os benefícios que essas transformações causaram nos países que por primeiro promoveram seus processos de industrialização. Mantém diálogos com os economistas ligados à CEPAL e ao partidão, criticando a visão darwinista dos comunistas, da evolução por etapas, no aguardo dos benefícios que necessariamente a industrialização traria.

A retomada do ensaio em 2003 revê esse processo de acumulação em sua continuidade para nos trazer a esdrúxula figura do ornitorrinco, como metáfora da deformação de nossa realidade socio-econômica. O ornitorrinco é um animal de rara e indefinida feição. O professor recorre à Grande Enciclopédia Larousse para defini-lo: "Mamífero monotremo, da subclasse dos prototérios, adaptado à vida aquática. Alcança 40 cm de comprimento, tem bico córneo, semelhante ao bico de pato, pés espalmados e rabo chato. É ovíparo. Ocorre na Austrália e na Tasmânia...O ornitorrinco vive em lagos e rios, na margem dos quais escava tocas que se abrem dentro d'água. Os filhotes alimentam-se lambendo o leite que escorre nos pelos peitorais da mãe, pois esta não apresenta mamas.  O macho tem um esporão venenoso nas patas posteriores. Este animal conserva certas características reptilianas, principalmente uma homeotermia imperfeita".


Que comparação! É a visão de um país e de uma sociedade que se industrializou e se urbanizou, mas não se desenvolveu, sob a égide da "modernização conservadora", tão cara aos sociólogos dos Estados Unidos. Como chegamos a toda essa deformação? Os dois ensaios, escritos num hiato de tempo de trinta anos nos remetem às causas. Elites submissas ao capital internacional, golpes contra a democracia permanentemente pairando no ar, interpretações errôneas da realidade, sindicalismo frágil e o espírito do capital, especialmente do capital financeiro indomável são apontadas como as causas dessa anomalia da figura social e econômica do ornitorrinco.

Na página 132, já em O Ornitorrinco encontramos a descrição do ornitorrinco brasileiro. Dou uma pequena amostra: "Como é o ornitorrinco? Altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor industrial da Segunda Revolução Industrial completo, avançado, tatibate, pela Terceira Revolução, a molecular-digital ou informática. Uma estrutura de serviços muito diversificada numa ponta, quando ligada  aos estratos de altas rendas, a rigor, mais ostensivamente perdulários que sofisticados; noutra, extremamente primitiva, ligada exatamente ao consumo dos estratos pobres". E por aí vai...para terminar de uma forma bastante desesperançosa, ao constatar que estamos presos nas teias da financeirização da economia em que estão enredados os dois grandes partidos brasileiros. O PT, como administrador dos fundos de pensão e o PSDB, como administrador dos grandes bancos. Que futuro teremos?

Na mesma página 132 temos uma nota que considero profundamente ilustrativa. Fala sobre FHC.: "Deste ponto de vista, o livro de FHC, Empresário Industrial e desenvolvimento econômico (DIFEL), reconhecia que a burguesia industrial nacional preferia a aliança com o capital internacional. Trata-se talvez do que de melhor o ex-sociólogo, hoje ex-presidente e eterno candidato ao Planalto, produziu academicamente. Roberto Schwartz (que prefacia o livro) sustenta a tese de que, na Presidência, Cardoso implementou exatamente suas conclusões deste livro; já que a burguesia nacional havia renunciado a um projeto nacional, ele enveredou decididamente para integrar o país na globalização".

Que Deus tenha piedade desse país, dessa nação! Francisco de Oliveira foi um dos fundadores do PT, partido com o qual se frustrou enormemente, filiando-se ao PSOL. Em 2019, quando a figura do ornitorrinco se deformava ainda mais em sua configuração, o bravo pensador da economia, da sociedade e da realidade brasileira faleceu, aos 85 anos de idade.

Na contracapa do livro lemos o escrito de Roberto Schwartz: "Escritos com trinta anos de intervalo, Crítica à razão dualista (1972) e O Ornitorrinco (2003) representam, respectivamente, momentos de intervenção e de construção sardônica. Num a inteligência procura clarificar os termos da luta contra o subdesenvolvimento; no outro, ela reconhece o monstrengo social em que, até segunda ordem, nos transformamos".



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