terça-feira, 18 de outubro de 2022

A língua - para o bem ou para o mal. Uma lenda do candomblé.

 Ainda ando meio impactado com a viagem que empreendemos, em maio, para Salvador e Santo Amaro da Purificação. Em Santo Amaro tivemos contato com a festa do Bembé do Mercado, uma festa que ocorre desde 1889. É uma festa, simultaneamente, de gratidão e de resistência. Ela é uma festa do candomblé, única, realizada em espaço público, o espaço do mercado da cidade.

Depois do contato com essa festa, que se realiza há 133 anos, comecei a me interessar mais pelo candomblé e pela sua expressão através dessa longeva festa. Santo Amaro, junto com outras cidades do Recôncavo Baiano, formaram o coração da escravidão baiana. Foi o grande centro da economia açucareira, economia que trouxe para o Brasil a escravidão. Já de volta para Curitiba, me embrenhei em muitas leituras e entrei em contato com a obra de Reginaldo Prandi, hoje, o maior estudioso do país das religiões brasileiras de origem africana.

Mitologia dos orixás. Reginaldo Prandi. Companhia das Letras. 2022. 1ª edição: 2001.

O seu livro Mitologia dos orixás (o candomblé é a religião dos orixás), editado pela Companhia das Letras, já está em sua 33ª reimpressão, tal é o interesse pelo tema. No livro são relatados 301 dos incontáveis mitos dos ancestrais africanos, reis e heróis dos povos iorubás (parte da Nigéria) que se transformaram em divindades, que se transformaram em orixás. No candomblé existe um deus criador, Olorum ou Olodumare, (Olofim, nas santerias cubanas), que, após a criação do universo, entregou a governança do mundo aos seus orixás. São eles, que através de seus feitos heroicos, se transformaram em divindades.

Os mitos são muito bonitos e significativos. A maioria tem a sua procedência na observação dos fenômenos da natureza e se incorporaram nesses fenômenos da própria natureza. Por isso a sua preservação é de fundamental importância. A mediação dos orixás com os humanos se dá através dos babalaôs, os sacerdotes dessa religião. Os babalaôs, na versão brasileira, são as mães e os pais de santo, que regem o povo de santo nos terreiros.

Mas, como convite para a leitura, peço uma licença toda especial ao grande pesquisador Reginaldo Prandi, para apresentar uma das lendas do livro, como um aperitivo, como uma pequena amostra das maravilhas que livro nos reserva. É a história de número 271, contada nas páginas 466-467 do livro. Ela versa sobre os poderes benéficos ou maléficos da língua e tem por título, Orunmilá (o primeiro babalaô, o detentor dos segredos) recebe de Obatalá (o criador dos humanos) o cargo de babalaô. Vejamos:

"Fazia muito tempo // que Obatalá admirava a inteligência de Orunmilá // Em mais de uma ocasião // Obatalá pensou em entregar a Orunmilá o governo do mundo. // Pensou em entregar a Orunmilá o governo dos segredos, // os segredos que governam o mundo // e a vida dos homens. // Mas quando refletia sobre o assunto // acabava desistindo. // Orunmilá, apesar da seriedade de seus atos, // era muito jovem para missão tão importante. // Um dia Obatalá quis saber se Orunmilá era // tão capaz quanto aparentava // e lhe ordenou que preparasse a melhor comida // que pudesse ser feita.

Orunmilá preparou uma língua de touro // e Obatalá comeu com prazer. // Obatalá, então perguntou a Orunmilá por qual razão // a língua era a melhor comida que havia. // Orunmilá respondeu: // 'Com a língua se concede axé, // se ponderam as coisas, // se proclama a virtude, // se exaltam as obras // e com seu uso os homens chegam à vitória'. // Após algum tempo, Obatalá pediu a Orunmilá // para preparar a pior comida que houvesse. // Orunmilá lhe preparou a mesma iguaria. //Preparou língua de touro.

Surpreso, Obatalá lhe perguntou como era possível // que a melhor comida que havia fosse agora a pior. // Orunmilá respondeu: // 'Porque com a língua os homens se vendem e se perdem. // Com a língua se caluniam as pessoas, // se destrói a boa reputação // e se cometem as mais repudiáveis vilezas'. // Obatalá ficou maravilhado com a inteligência // e precocidade de Orunmilá. // Entregou a Orunmilá nesse momento o governo dos segredos. // Orunmilá foi nomeado babalaô, // palavra que na língua dos orixás quer dizer pai do segredo. // Orunmilá foi o primeiro babalaô".

Na cultura ocidental, certamente, chamaríamos essa história da mitologia dos povos iorubás de fábula. E quanta atualidade há nessa magnífica fábula. Se gostou, no livro tem ainda trezentas outras dessas histórias, um prólogo maravilhoso de iniciação ao candomblé e um riquíssimo acervo de fotografias. Está feita a recomendação. Observem ainda a arte poética do autor, ao contar essas histórias.

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