quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Le Goff e Dostoiévski falam sobre a mentira.

O Brasil de 2022 se transformou no país governado pela mentira. É simplesmente inacreditável o que está acontecendo. Um enorme abismo poderá estar voltando seus olhos sobre nós. A situação é extremamente preocupante. Quero aqui registrar duas passagens clássicas sobre a mentira. A primeira é do grande medievalista, Jacques Le Goff, retirada de seu livro A civilização do ocidente medieval. Vejamos:

O monumental livro de Jacques Le Goff.

"Antes de chegar lá, os homens da Idade Média tiveram que lutar contra uma impressão generalizada de insegurança, e o combate não tinha chegado ao fim no século 13. Sua grande perturbação provém de que os seres e as coisas não são realmente o que parecem. O que a Idade Média mais detesta é a mentira. O epíteto natural de Deus é 'aquele que nunca mente'. Os maus são mentirosos. 'Vós sois um mentiroso, Fernando de Carrion', diz Pero Bermuez na cara de um infante, e Martin Antolinez, outro companheiro do Cid, joga na cara do segundo infante: 'Fechais vossa boca, mentiroso, boca-sem-verdade'. A sociedade é feita de mentirosos. Os vassalos são traidores, félons (vassalo traidor) que renegam seu senhor, êmulos de Ganelão (traidor famoso dos francos), e, depois dele, do grande protótipo de todos: Judas. Os mercadores são fraudadores que só pensam em enganar e roubar. Os monges são hipócritas, tal Falso-Semblante, personificado no Roman de la Rose por um franciscano. O vocabulário medieval é de extraordinária riqueza para designar os inumeráveis tipos de mentira e as infinitas espécies de mentirosos. Até os profetas podem ser falsos profetas, e os milagres, falsos milagres, obras do Diabo. É que o domínio do homem medieval sobre a realidade é tão fraco que ele deve valer-se da astúcia para levar a melhor. Pode-se pensar que aquela sociedade belicosa tudo ganhava ao atacar. Grande ilusão. As técnicas eram tão medíocres que a resistência quase sempre prevalecia sobre a ofensiva. Mesmo no domínio militar, os castelos e as muralhas eram quase
impenetráveis. Quando o invasor os forçava, era quase sempre pela astúcia. A totalidade de bens colocados à disposição da humanidade medieval era tão insuficiente que para viver era preciso 'se arranjar'. Aquele que não tinha força ou astúcia estava quase que com certeza fadado a perecer. O que é seguro e quem é seguro? Da imensa obra de Santo Agostinho, a Idade Média deu atenção especial ao tratado De Mendacio (Da mentira)".

Texto extraído de: LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Bauru, EDUSC, 2005. Páginas 354-355.

A segunda é de Dostoiévski, retirada de Os irmãos Karámazov. Já li o livro duas vezes, mas a citação me veio através do facebook, numa postagem de Paulo Wendling, que mostrava um artigo do arcebispo de Manaus, D. Leonardo Steiner de Em Tempo, datado de 15 e 16 de novembro de 2022. O título do texto é Da verdade. A citação abre o texto e reflete o atual momento que estamos vivendo na política brasileira. Uma aula sobre a condição humana do mentiroso.

"Quem mente a si mesmo e escuta as próprias mentiras, chega ao ponto de já não poder distinguir a verdade dentro de si mesmo nem ao seu redor, e assim começa a deixar de ter estima de si mesmo e dos outros. Depois, dado que já não tem estima de ninguém, cessa também de amar, e então na falta de amor, para se sentir ocupado e distrair, abandona-se às paixões e aos prazeres triviais e, por culpa dos seus vícios, torna-se como uma besta; e tudo isso deriva do mentir contínuo aos outros e a si mesmo".

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