sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 23. Maurício Tragtenberg.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - Clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o historiador e militante, Maurício Tragtenberg, numa resenha de Paulo Douglas Barsotti. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se iniciou no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Barsotti inicia a sua resenha com uma frase em epígrafe: "O enigma decifrado brasileiro é que aqui tudo se reforma e nada muda". E logo emenda com uma segunda: "Qualquer Estado por natureza é conservador". Uma bela definição do resenhado. Maurício Tragtenberg nasceu em Getúlio Vargas (RS), no pequeno distrito de Erebango, no ano de 1929. É filho de imigrantes judeus ucranianos, fugidos dos pogroms czaristas. A sua primeira escola foi num galpão da pequena colônia em que nasceu. Começaram ali as escolas e universidades de sua vida, como costumava dizer.

Tragtenberg nunca pertenceu a qualquer ortodoxia, sempre defendendo a autonomia dos trabalhadores, criticando veementemente o capitalismo, o stalinismo e as burocracias. Mas teve aproximações com Marx, com os anarquistas, com Trotski, com Max Weber... Foi sempre eclético e pluralista. Desde cedo conheceu a literatura russa e se interessou pela sua Revolução de 1917. Considerou o stalinismo como uma perversão do socialismo e o denunciou pela sua aproximação com o capitalismo. A sua primeira expansão do conhecimento veio com a mudança para Porto Alegre, onde presenciou uma ação da Ação Integralista Brasileira (AIB), enxergando nela uma antecipação dos pogroms fascistas. Via na AIB uma extensão dos movimentos nazifascistas europeus.

De Porto Alegre segue para São Paulo, residindo nos bairros judeus, e, mais tarde, com os trabalhadores italianos, no Brás. Ali fez uma das escolhas de sua vida: nem judeu, nem cristão, mas ateu. No pós segunda guerra, por um breve tempo militou no PCB, rompendo com ele por causa da burocracia stalinista. Levou suas dúvidas ao Partido, sendo que ele as proibia. Em São Paulo conheceu Hermínio Sachetta, famoso trotskista. Permaneceu no trotskismo por um breve tempo, pois o considerava como um mero stalinismo mais intelectualizado. Fez progressos na vida. De Office boy, passa, em concurso público, na empresa de água e eletricidade, trabalhando seis horas por dia. Assim conseguiu frequentar a biblioteca pública Mário de Andrade, onde conheceu Florestan Fernandes e Antônio Cândido. Estes lhe orientaram leituras e lhe indicaram o caminho para ingressar na USP, mesmo sem o ensino básico completo, através da apresentação de um ensaio. Foi o que ele fez. Das ciências sociais migrou para a história.

Formado, torna-se professor da rede pública, trabalhando em Iguape, Taubaté, Mogi das Cruzes e na capital. No ensino superior, começa por São José do Rio Preto. Em 1964 começam as suas grandes agruras. É atingido pelo primeiro Ato Institucional, com a demissão do emprego. Passa um tempo internado em hospital, quando conheceu a burocracia médica. Aprofunda suas leitura de Max Weber. Pelas mãos de Cláudio Abramo chega a Folha de S.Paulo e ao Notícias Populares, onde mantém uma coluna que se tornou famosa por ser dirigida diretamente aos trabalhadores: No Batente. Essa coluna perturbou a classe patronal, o que lhe rendeu um curto prazo de validade. Em 1973 concluiu o seu doutorado, versando sobre o tema da burocracia. A orientação foi de Francisco Weffort. Depois foi professor da UNESP, UNICAMP e USP, tendo passado também pela PUC/SP e pela FGV.

Na sua coluna No Batente abordava, sem medo, os temas mais candentes. Considerava as palestras de motivação como tentativas para que as empresas tivessem escravos satisfeitos e contentes e interpretava o anúncio da exigência de boa aparência como um recado: negro não serve. Passou a trabalhar junto a organizações sindicais e orientou muitos trabalhos acadêmicos sobre o tema do sindicalismo. Defendia a organização autônoma dos trabalhadores, mas percebeu também o seu enredamento na burocracia sindical. Sempre a burocracia. Em seus livros, considerou a revolução de 1930 como um arranjo de modernização das elites, mas considerou 1964 muito pior. 1964 desfez as conquistas trabalhistas dos governos Vargas e promoveu o milagre brasileiro, através da super exploração do trabalhador.

Viu o renascer do sindicalismo brasileiro, com a aproximação do fim da ditadura militar, com certo entusiasmo, que se desfaz, à medida em que ele deixa de ser a organização autônoma dos trabalhadores. Com a mesma dose de otimismo viu o surgimento do Partido dos Trabalhadores, que também logo se desfez, ao perceber que o seu projeto não passava de disputas eleitorais. A Constituinte de 1988 lhe deu a oportunidade de estudar todas as constituintes brasileiras, quando chegou à conclusão da frase já registrada na epígrafe: "tudo se reforma e nada muda". Quanto ao Partido dos Trabalhadores, afirma que este se transformou num mero braço esquerdo do sistema. Ao defender a autonomia dos trabalhadores, critica a democracia representativa pela delegação de poder que ela dá aos eleitos: "Não há luta ou vida por procuração".

Sua obra está reunida em dez volumes, numa publicação da UNESP. Para ressaltar a sua importância deixo registrados os dois parágrafos finais da resenha: "A debilidade histórica das oposições brasileiras caminha pari passu com os processos de conciliação das classes dominantes e exclusão das massas populares da participação política. Tragtenberg ilustra a questão recorrendo a Justiniano José de Almeida (1812- 1863), jornalista ligado ao Partido Conservador que, 'referindo-se à velha Regência', caracteriza a política brasileira em três movimentos: ação, reação e translação. Assim, 'a primeira ação é popular, a segunda é absorvida pela elite; e a terceira é a conciliação'. No Brasil, arremata Tragtenberg, tudo 'se resolve na conciliação'. Esse é o 'enigma decifrado brasileiro' em que 'tudo se reforma e nada muda'.

Para finalizar, Maurício Tragtenberg, além de escritor e cronista do Brasil, possui um extraordinário trabalho acadêmico, em que foi orientador de inúmeras teses e mestrados que abriam espaço para estudos às vezes considerados 'estranhos à Universidade' Apesar de todas as agruras vividas, era difícil ver Tragtenberg sem seu senso de humor cáustico e de fina ironia, modesto, sempre escutando as pessoas, tolerante, sem jamais camuflar suas posições e sempre disposto a prestar solidariedade efetiva aos colegas e amigos que, assim como ele, sofriam discriminações políticas e acadêmicas. Persona rara que faz muita falta no meio político acadêmico brasileiro".

E, como de hábito, o trabalho anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_25.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.