sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Honoré de Balzac. Ilusões perdidas. Um alerta sobre os perigos da imprensa

Em Ilusões perdidas, Honoré de Balzac nos faz sérias advertências sobre os perigos da imprensa, na Paris de 1839, ano da publicação de Um grande homem de província em Paris, a segunda parte do seu romance Ilusões perdidas. Nessa parte do livro encontramos o jovem poeta da cidade provinciana de Angoulême, em Paris, em busca da fortuna, a qualquer custo. Antes de apresentar as advertências feitas por Balzac, através de seus personagens, observemos a data de publicação. 1839. Não estamos longe de 1789, dos anos de domínio de Napoleão e da agitação política posterior. Anos de grandes controles. Havia o temor da liberdade de imprensa. Vejamos a passagem em que muitos editores e redatores estão presentes. Selecionei este trecho:

Ilusões perdidas. Honoré de Balzac.

"- poderíamos mostrar que há uma serpente qualquer neste frasco de cerejas em aguardente - disse Vernon.

- O senhor mesmo acabaria acreditando - disse Vignon ao diplomata.

- Senhores, não despertem suas garras que estão dormindo - exclamou o duque de Rhétoré.

- A influência e o poder de um jornal estão em sua aurora - disse Finot -, o jornalismo está na infância, ele crescerá. Tudo, daqui a dez anos, será submetido à publicidade. O pensamento iluminará tudo, ele...

-Tudo degradará - disse Blondet, interrompendo Finot.

- É uma boa frase - disse Claude Vignon.

- Fará reis - disse Loustou.

- E desfará monarquias - disse o diplomata.

- Portanto - disse Blondet -, se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la; mas ela existe, dela vivemos. 

- Dela morrerão - disse o diplomata. - Não veem que a superioridade das massas, supondo que os senhores as esclareçam, tornará mais difícil a grandeza do indivíduo? Que, semeando o raciocínio no coração das classes baixas, os senhores colherão a revolta e serão suas primeiras vítimas?  O que se quebra em Paris quando há um motim?

- Os lampiões de rua - disse Nathan -; mas nós somos muito modestos para ter esses medos, seremos apenas levemente rachados.

- Os senhores são um povo muito inteligente para permitir que um governo se firme - disse o ministro. - Sem isso, recomeçariam com suas plumas a conquista da Europa, que suas espadas não souberam conservar.

- Os jornais são um mal - disse Claude Vignon, - Seria possível utilizar esse mal, mas o governo quer combatê-lo. Há de se seguir uma luta. Quem sucumbirá? Eis a questão.

- O governo! - disse Blondet. - Estou me matando de tanto gritar isso. Na França, o espírito é mais forte que tudo, e os jornais têm algo a mais que o espírito de todos os homens espirituosos: a hipocrisia de Tartufo.

- Blondet! Blondet! - disse Finot. - Você vai longe demais: há assinantes aqui.

- Você é dono de um desses entrepostos de veneno, deve estar com medo, mas eu estou pouco ligando para todos esses seus armazéns, embora viva deles!

- Blondet tem razão - disse Claude Vignon. - O jornal, em vez de ser um sacerdócio, se tornou um meio para todos os partidos; de meio, virou comércio, e, como todos os comércios, não tem moral nem princípios. Todo jornal é, como diz Blondet, um armazém onde se vendem ao público palavras da cor que ele quiser. Se existisse um jornal dos corcundas, ele provaria dia e noite a beleza, a bondade, a necessidade dos corcundas. Um jornal não é mais feito para esclarecer, mas para adular as opiniões. Assim, todos os jornais serão, mais cedo ou mais tarde, covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos; matarão as ideias, os sistemas, os homens, e florescerão exatamente por isso. terão o benefício de todos os seres da razão: o mal será feito sem que ninguém seja culpado por ele. Eu serei, eu Vignon, vocês serão, você Loustou, você Blondet, você Finot, uns Aristides, uns Platões, uns Catões, homens de Plutarco; todos seremos inocentes, poderemos lavar as mãos de qualquer infâmia. Napoleão explicou a razão desse fenômeno moral ou imoral, como quiserem, numa expressãao sublime que lhe ditaram seus estudos sobre a Convenção: 'Os crimes coletivos não comprometem ninguém'. O jornal pode se permitir o comportamento mais atroz, ninguém se considera aviltado pessoalmente por isso.

- Mas o poder fará leis repressivas - disse Du Bruel -, já as está preparando.

Ora! O que pode a lei contra o espírito francês - disse Nathan -, o mais sutil de todos os dissolventes?

- As ideias só podem ser neutralizadas pelas ideias - continuou Vernon. - Só o terror, o despotismo podem abafar o gênio francês, cuja língua se presta admiravelmente bem à alusão, ao duplo sentido. Quanto mais repressiva for a lei, mais o espírito explodirá, como o vapor dentro de um mecanismo à válvula. Portanto, o rei faz uma coisa boa, mas, se o jornal for contra ele, o ministro é que terá feito tudo, e vice-versa. Se o jornal inventa uma calúnia infame, foi alguém que lhe contou. Ao indivíduo que se queixa, ficará quite ao pedir desculpas pela grande liberdade que tomou. Se é arrastado perante os tribunais, queixa-se de que ninguém foi lhe pedir uma retificação; mas que alguém lhe peça, e ele a recusa, rindo, e trata seu crime de bagatela. Por fim, desrespeitará sua vítima quando ela triunfar. Se for punido, se tiver pesada multa a pagar, vai apontar o queixoso como um inimigo das liberdades, do país e das Luzes. Dirá que o senhor fulano de tal é um ladrão, explicando como ele é o homem mais honesto do reino. Portanto, seus crimes, bagatelas! Seus agressores, monstros! E pode, a certa altura, fazer crer o que quiser às pessoas que o leem diariamente. Depois, nada do que o desagrada será patriótico, e jamais ele estará errado. Há de se servir da religião contra a religião, da Carta contra o rei; há de ridicularizar a magistratura quando a magistratura o ofender; há de louvá-la quando ela tiver servido às paixões populares. Para ganhar assinantes, há de inventar as fábulas mais comoventes, exibir-se como Bobèche. O jornal preferiria servir o próprio pai, cru, temperado só com o sal de suas piadas, a não interessar ou não divertir seu público. Será o ator pondo as cinzas do próprio filho na urna para chorar de verdade, a amante tudo sacrificando a seu amigo.

É, em suma, o povo in-fólio - exclamou Blondet, interrompendo Vignon. 

- Sim, mas um povo hipócrita e sem generosidade - continuou Vignon. - Que banirá de seu seio o talento, assim como Atenas baniu Aristides. Veremos os jornais, dirigidos primeiro por homens honrados, caírem mais tarde sob o governo dos mais medíocres que tiverem a paciência e a maleabilidade da goma elástica que faltam aos belos gênios, ou dos quitandeiros que tiverem dinheiro para comprar os que escrevem.. Já estamos vendo essas coisas! Mas, daqui a dez anos, o primeiro garoto saído do liceu se julgará um grande homem, subirá à coluna de um jornal para esbofetear seus predecessores e os puxará pelos pés para tomar seu lugar. Napoleão estava certíssimo ao amordaçar a imprensa. Eu apostaria que, num governo criado pelas próprias folhas da oposição, elas o atacariam pelas mesmas razões e com os mesmos artigos que hoje se escrevem contra o governo do rei, se esse mesmo governo lhes recusasse o que quer que fosse. Quanto mais concessões se fizerem aos jornalistas, mais exigentes serão os jornais. Os jornalistas parvenus serão substituídos por jornalistas famintos e pobres. A chaga é incurável, será cada vez mais maligna, cada vez mais insolente; e, quanto maior o mal, mais será tolerado, até o dia em que a confusão se instalar nos jornais pela sua abundância, como em Babel. Nós todos sabemos, tantos quantos somos, que os jornais irão mais longe que os reis na ingratidão, mais longe que o mais sujo comércio nas especulações e nos cálculos, e que devorarão nossas inteligências vendendo todas as manhãs sua aguardente cerebral; mas todos nós lá escreveremos, como essas pessoas que exploram uma mina de mercúrio sabendo que aí morrerão. Ai está, ao lado de Coralie, um rapaz... como é o nome dele? Lucien! É bonito, é poeta, e, o que é melhor para ele, inteligente; pois bem, entrará em um desses lugares mal-afamados do pensamento, chamados jornais, ali cometerá essas covardias anônimas que, na guerra das ideias, substituem os estratagemas, os saques, os incêndios, as mudanças de bordo, na guerra dos condottieri. Quando ele tiver, como mil outros, gasto um belo talento em proveito dos acionistas, esses vendedores de veneno o deixarão morrer de fome, se tiver sede, e de sede, se tiver fome...". Páginas 357 a 360.  

E se fôssemos atualiza este texto! O que teríamos a acrescentar? Deixo ainda o link da resenha do livro:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/10/ilusoes-perdidas-honore-de-balzac.html


2 comentários:

  1. Até hoje a imprensa em geral é volúvel. Às vezes publica assuntos "ao pé da letra" e às vezes vagueia por "mares nunca d´antes navegados!"

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    1. Meu amigo, que tempos! Uma imprensa massiva está se afirmando. Existem os leitores. É preciso direcioná-los. Esse é o imperativo. Isso vale até hoje com as chamadas teclas de aluguel. Agradeço a sua manifestação.

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