segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Os horrores da colonização e os indígenas canibais. Montaigne em "OS ENSAIOS".

O capítulo XXX do Livro Primeiro de Os ensaios, tem por título - Sobre os canibais. É um dos textos mais conhecidos e - aos brasileiros -, interessa particularmente. Ele tem a seguinte apresentação, da tradutora do livro, Rosa Freire D'Aguiar:

"Os canibais do título são os índios do Brasil. Montaigne leu muitos relatos da conquista do Novo Mundo, inclusive  o de Girolano Benzoni, Historia del mondo nuovo (Veneza, 1565), na tradução francesa de 1579, obra cujo subtítulo enfatiza o terrível tratamento dado aos nativos pelos conquistadores. Ele pretende se apoiar em testemunhos diretos, recolhidos junto aos atores do episódio da França Antártica, a colônia que os franceses tentaram implantar na baía da Guanabara a partir de 1555; junto a marinheiros e até mesmo a alguns índios que estavam no porto de Rouen em 1562. O 'primitivismo' de Montaigne tem pouco a ver com o 'bom selvagem' dos séculos seguintes. Seus índios são sanguinários e cruéis, antropófagos e polígamos. Estes dois últimos traços, longamente analisados, levam a pensar no caráter paradoxal e provocador do ensaio, muito trabalhado em sua eloquência. Se aqueles povos são de fato cruéis, nós também somos. Mas seus métodos simples têm muito a nos ensinar: podem servir de padrão para julgarmos A República de Platão, o mito da Idade de Ouro, a crueldade, a corrupção e a cultura da Europa. O que seduz Montaigne nos habitantes da costa brasileira é sua coragem, sua virtude, seu ascetismo espartano: cidadãos ideais de uma Grécia onírica que uniria Esparta e Atenas. Com seu título chamativo, este capítulo seduzirá Shakespeare (que o ecoa em A tempestade) e Rousseau. Mas vamos ao texto:

Os ensaios. Michel de Montaigne.

Os canibais - [...] Eles (Licurgo e Platão) não conseguiram imaginar uma ingenuidade tão pura e simples como a que vemos por experiência e nem conseguiram acreditar que nossa sociedade conseguisse manter-se com tão pouco artifício e solda humana. É uma nação, eu diria a Platão, em que não há nenhuma espécie de comércio, nenhum conhecimento das letras, nenhuma ciência dos números, nenhum termo para magistrado nem para superior político, nenhuma prática de subordinação, de riqueza, ou de pobreza, nem contratos nem sucessões, nem partilhas, nem ocupações além do ócio, nenhum respeito ao parentesco exceto o respeito mútuo, nem vestimentas, nem agricultura, nem metal, nem uso de vinho ou de trigo. As próprias palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, perdão, são desconhecidas. Como ele consideraria distante dessa perfeição a república que imaginou!

"Eis as primeiras leis que oferece a natureza". Virgílio, Geórgicas, II, 20.

Ademais, vivem num país muito agradável e de clima ameno, de modo que pelo que me disseram minhas testemunhas é raro ver ali um homem doente; e garantiram-me não ter visto nenhum trêmulo, remelento, desdentado, ou curvado de velhice. Estão instalados ao longo do mar e cercados do lado da terra por grandes e altas montanhas, tendo entre os dois uma extensão de cerca de cem léguas de largura. Têm grande abundância de peixe e carnes, sem nenhuma semelhança com os nossos; e os comem sem outro artifício além de cozinhá-los. O primeiro que para lá levou um cavalo, embora já os tivesse encontrado em várias outras viagens, causou-lhes tanto horror naquela posição que o mataram a flechadas antes de chegarem a reconhecê-lo. Suas construções são muito compridas e com capacidade para duzentas ou trezentas almas; são cobertas de casca de grandes árvores, presas à terra por uma ponta e sustentando-se e apoiando-se uma na outra pela cumeeira, à moda de algumas de nossas granjas, cuja cobertura pende até o chão e serve de muro. Têm madeiras tão duras que as usam para cortar, e com elas fazem suas espadas e espetos para grelhar os alimentos. Seus leitos são de um tecido de algodão, suspensos no teto, como os de nossos navios, cada um com o seu, pois as mulheres dormem separadas dos maridos. Levantam-se com o sol e comem logo depois de se levantarem, para o dia todo, pois, não fazem outra refeição além dessa. Não bebem nesse momento, como Suídas (grande lexicógrafo do final do século X) conta sobre alguns outros povos do oriente, que só bebem fora da refeição; bebem várias vezes ao dia, em profusão. Sua bebida é feita de certa raiz e é da cor de nossos vinhos claretes. Só a tomam morna: essa beberagem se conserva apenas dois ou três dias, tem um gosto um pouco picante, nada inebriante, é salutar para o estômago e laxativa para os que não estão acostumados; é uma bebida muito agradável para quem está habituado. Em vez do pão comem uma substância branca, parecida com coriandro em conserva. Provei-a, o gosto é doce e um pouco insosso. Passam o dia dançando. Os mais moços vão à caça dos bichos, com arcos. Enquanto isso, uma parte das mulheres se ocupa de aquecer a bebida, o que é sua principal função. 

Há um dos velhos que, de manhã, antes de começarem a comer, prega ao mesmo tempo para todos os moradores, passeando de uma ponta à outra e repetindo a mesma frase várias vezes, até que tenha completado a volta (pois são construções que têm bem uns cem passos de comprimento), e só lhes recomenda duas coisas, a valentia contra os inimigos e a amizade por suas mulheres. E jamais deixam de salientar essa obrigação, como um refrão, de que são elas que lhes mantêm a bebida morna e temperada. Vê-se em vários lugares, e entre outros em minha casa, a forma de seus leitos, cordões, espadas, e pulseiras de madeira com que cobrem os punhos nos combates, e grandes caniços abertos numa ponta, cujo som marca a cadência de sua dança. São inteiramente raspados e barbeiam-se muito mais rente que nós, sem outra navalha que não de madeira ou pedra. Creem que as almas são eternas e aquelas que bem mereceram dos deuses estão alojadas no lugar do céu onde o sol se levanta: as malditas, do lado poente. Têm não sei que sacerdotes e profetas, que aparecem raramente ao povo e moram nas montanhas. Ao chegarem, faz-se uma grande festa e uma assembleia solene de várias tabas (cada granja, como descrevi, constitui uma taba, e distam  uma da outra cerca de uma légua francesa). Esse profeta lhes fala em público, exortando-os à virtude e ao dever, mas toda a moral deles só contém estes dois artigos: coragem na guerra e afeição por suas mulheres. Prognostica-lhes as coisas vindouras e os resultados que devem esperar de seus empreendimentos: encaminha-os ou os dissuade da guerra, mas com a condição de que, caso se engane em suas previsões e lhes aconteça diferentemente do que lhes predisse, ele é picado em mil pedaços, se o agarrarem, e condenado como falso profeta. Por isso, quem uma vez se enganou não é mais visto.  A adivinhação é dom de Deus: eis por que abusar dela deveria ser uma impostura punível. Entre os citas, quando os adivinhos falhavam eram deitados com ferros nos pés e nas mãos em cima de carroças cheias de urze, puxadas por bois, onde eram queimados. Aqueles que manipulam as coisas sujeitas ao governo da competência humana são desculpáveis se fizeram o que podiam. Mas esses outros, que vêm nos embair com garantias de uma faculdade extraordinária, que está fora de nosso conhecimento, não devemos puni-los por não manterem suas promessas e pela temeridade de sua impostura?

Eles têm suas guerras contra as nações que ficam além das montanhas, mais adiante na terra firme, para as quais vão inteiramente nus, não tendo outras armas além dos arcos ou de espadas de madeira, afiadas numa ponta, à modas das ponteiras de nossas lanças. É admirável a firmeza de seus combates, que sempre terminam em morte e efusão de sangue, pois eles não sabem o que é fuga e pavor. Cada um traz como troféu a cabeça do inimigo trucidado e a pendura à entrada de sua casa. Depois de tratar bem por muito tempo seus prisioneiros, e com todas as comodidades que podem imaginar, quem for o dono deles faz uma grande assembleia com seus conhecidos. Prende uma corda num dos braços do prisioneiro, por cuja ponta o segura, afastado alguns passos, temendo ser ferido por ele, e dá ao mais querido amigo o outro braço para que o segure da mesma forma; e os dois, em presença de toda a assembleia, o matam a golpes de espada. Feito isso, assam-no e o devoram juntos, e mandam pedaços aos amigos ausentes. Não é, como se pensa, para se alimentarem, assim como faziam antigamente os citas, mas para simbolizar uma vingança extrema. E, como prova, tendo visto que os portugueses, aliados de seus inimigos, usavam contra eles, quando os agarravam, outro tipo de morte, que consistia em enterrá-los até a cintura e darem no restante do corpo muitas flechadas e enforcá-los depois, pensaram que os homens desse outro mundo (pessoas que tinham espalhado pela vizinhança o conhecimento de muitos vícios e que eram mestres muito maiores que eles em toda maldade) não empregavam sem motivo esse método de vingança, que devia ser mais cruel que o deles, tanto assim que começaram a abandonar sua maneira antiga para seguirem essa outra.

Não fico triste por observarmos o horror barbaresco que há em tal ato, mas sim por, ao julgarmos corretamente os erros deles, sermos tão cegos para os nossos. Penso que há mais barbárie do que comê-lo morto, em dilaceram por tormentos e suplícios um corpo ainda cheio de sensações, fazê-lo assar pouco a pouco, fazê-lo ser mordido e esmagado pelos cães e pelos porcos (como não apenas lemos mas vimos de fresca memória, não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e compatriotas, e, o que é pior, a pretexto de piedade e religião) do que em assá-lo e comê-lo depois que está morto. Crísipo e Zenão, chefes da escola estoica, pensaram que não havia nenhum mal em usar nosso cadáver, no que fosse para nossa necessidade, e dele tirar alimento, assim como nossos ancestrais, estando sitiados por César na cidade  de Alésia, decidiram enfrentar a fome desse cerco com os corpos dos velhos, das mulheres , das crianças e de outras pessoas inúteis para o combate". A tonalidade do ensaio continua por aí, a mostrar as hipocrisias do seu tempo. (Páginas 146 a 151). Deixo ainda a resenha completa do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/11/os-ensaios-montaigne-1533-1592.html

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