terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

INCIDENTE EM ANTARES. Érico Veríssimo.

Se rememorar os fatos é um sinal de velhice, definitivamente, estou sendo atingido. Estou ficando velho. Me bate cada saudade! Decidi fazer uma série de releituras. Érico Veríssimo e José Saramago, para começar. Já comecei: Incidente em Antares foi o primeiro. Seguirei, depois, com os sete volumes de O tempo e o vento. Começar pelo Incidente em Antares, também tem o seu saudosismo. Por este livro iniciei a introdução da leitura de romances em minhas aulas, lá nos idos da década de 1970. A repercussão foi extraordinária. É evidente que a escolha do livro em muito ajudou. O livro foi lançado em 1970. O escritor nasceu em 1905 (Cruz Alta) e morreu em 1975 (Porto Alegre). O exemplar que eu tenho em mãos data de 1974, 11ª edição. A obra foi adquirida em 1975.

Incidente em Antares. Érico Veríssimo. Ed. Globo (Porto Alegre). 11ª edição. 1974.

Ao final do livro, com anotação a lápis, estão apontadas cinco questões, com as quais eu apontava os pontos a serem melhor observados: 1. As posições dos antarenses com relação à greve; 2. Principais momentos em que aparece a moral em seu tom marcadamente social; 3. Principais momentos de comportamentos autoritários; 4. Os dois padres - o seu pensamento; 5. Principais momentos no coreto. Era um "policiamento" da leitura.

Incidente em Antares (1970), está dividida em duas partes: Na primeira, aparece o histórico da cidade, desde as suas mais remotas origens, a escolha do nome, a sua localização geográfica (nas barrancas do rio Uruguai, na fronteira com a Argentina), e sobretudo, a descrição de suas tradições e costumes e a formação das famílias tradicionais, das quais emergem os notáveis da sociedade, que serão os protagonistas do Incidente, do qual se ocupa a segunda parte do romance.

O Incidente ocorre no dia 13 de dezembro do ano de 1963, dia em que eclode na cidade uma greve geral na "progressista" cidade, envolvendo os trabalhadores das primeiras indústrias (multinacionais) que se instalaram na cidade. No dia, estão para serem enterradas sete pessoas da sociedade local, com destaque para Dona Quitéria Campolargo, a matriarca de uma das grandes famílias tradicionais e, outrora rivais. Os demais mortos são o advogado (Dr. Cícero), um sapateiro anarquista, um operário morto sob tortura (suposto chefe do grupo dos 11), um pianista (Ah, as mãos!), uma prostituta, e um dos cachaceiros famosos, o pudim de cachaça. Acontece que os coveiros também participavam da greve. A greve é geral. Aí é que ocorre o Incidente.

Os mortos, sob a liderança do advogado, se levantam de seus caixões, se dirigem, primeiramente às suas casas, e, ao meio dia, ocupam o coreto da principal praça da cidade. Dá para imaginar o tamanho do entrevero. Primeiramente os flagras e depois as denúncias. Os notáveis da cidade se reúnem para tomarem decisões. Os notáveis não são necessariamente sábios ou corajosos. Uma ironia profunda. Os mortos não sofrem as consequências de suas falas. Como terminará este terrível Incidente. Os jornalistas de Porto Alegre chegam para a cobertura da insólita ocorrência. Para apagar os fatos da memória e apagar as "caluniosas" denúncias é lançada uma grande "Operação Borracha" e um glamoroso jantar festivo é realizado, em desagravo aos atingidos, facilmente imagináveis. Alguns dos fatos ou relatos merecerão posts especiais.

O livro é uma memória viva dos principais fatos políticos do entorno político de 1964, mas que retrocede aos fatos da escravidão e da República Velha e às tradicionais rivalidades políticas do Rio Grande do Sul. Antares, uma cidade fictícia, facilmente poderia ser nominada com as maiores cidades das barrancas do rio Uruguai, costeando a Argentina.  No livro aparece até um estudo, uma pesquisa universitária sobre o perfil da cidade. A ironia, ou a sátira, é a forma encontrada para desvelar todo um status quo das estruturas sociais, políticas, econômicas, religiosas e fundiárias da sociedade local. A figura da máscara e de seu uso cotidiano está onipresente. É um livro da fase final da vida do escritor. Ele morrerá, logo a seguir, em 1975. No romance estão também bem expressas as suas concepções ou visões de mundo. Sempre um humanista.

Nas orelhas do livro temos uma bela contextualização: "Quando pedimos a Érico Veríssimo que nos escrevesse um sinopse da história do Incidente em Antares, o romancista respondeu que preferia não correr o risco de imitar aquele tradutor que, segundo conhecida anedota, deu à versão portuguesa duma novela policial inglesa o título de Misterioso Crime Cujo Culpado Foi o Próprio Mordomo do Castelo. E acrescentou: 'Para falar a boa verdade, em todo romance ou novela, policial ou não, o verdadeiro criminoso é sempre o autor. O editor é cúmplice. O leitor, a vítima. O crítico, esse acumula as funções de detetive, juiz e, não raro, carrasco.

Abre o volume uma nota do autor: 'Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram são designados pelos seus nomes verdadeiros'.

Veríssimo começa a narrativa com referência à pré-História, ao Pleistoceno, com seus gliptodontes e megatérios. Depois, dando no tempo um salto de um milhão de anos, traz a ação a 1831, às origens mesmas da futura Antares. Durante toda a primeira parte do volume, o leitor fica conhecendo a história dessa localidade, bem como das duas oligarquias rivais de cem anos. Trata-se, em suma, duma espécie de apresentação do palco, do cenário, bem como das personagens principais e da numerosa comparsaria que, através de seus descendentes, serão envolvidos no dramático 'Incidente' de sexta-feira, 13 de dezembro de 1963.

A segunda parte, cuja duração é muito menor em tempo de calendário, embora ocupe mais espaço tipográfico, mostra o incidente propriamente dito e suas consequências. Trata-se dum romance 'desmobiliado', em que predominam a ação e o diálogo. Problemas políticos, econômicos e sociais são nele tratados com uma franqueza e uma objetividade jamais atingidas pelo autor em obras anteriores.

Érico Veríssimo considera Incidente em Antares  uma espécie de estuário em que desaguam rios e riachos de várias de suas tendências e características como escritor. A pitada de fantástico que dá ao livro um sabor exótico vem de alguns contos que ele escreveu entre 1929 e 1931, quando ainda vivia em Cruz Alta. O espírito desta narrativa é muito mais acentuadamente satírico do que em Caminhos Cruzados e O Senhor Embaixador. 'Desta vez' - confessa o autor - 'abri a veia da sátira e deixei seu sangue escorrer livre e abundantemente'.

Como tantos outros romances de Veríssimo, Incidente em Antares tem um caráter panorâmico, uma vasta galeria de personagens, entre os quais se conta também a própria cidade em que se passa a história. Muitos dos problemas humanos de nosso tempo encontram expressão nesse microcosmo criado com visível deleite pelo autor de O tempo e o vento".

Na pagina de abertura lemos uma importante caracterização da obra, sem assinatura: "Não é pequena (e é certo que não será sem proveito) a ironia deste livro contra 'a grandeza' de inúmeros fatos e homens do Brasil. Esta é uma obra escrita sem medo e contemplações, que rememora e adverte lucidamente. Jamais o romancista exprimiu com tal desafogo sua descrença em decantados 'heróis', aqui despojados do inútil brilho das comendas e reduzidos ao verdadeiro tamanho. Nunca tivemos um Érico Veríssimo assim político, o que vale dizer, em rigorosos termos brasileiros, assim apoderado de tão amargas razões, que ele ameniza com seu tom sempre jovial de escrever e com uma bem jogada configuração de sátira que impõe à narrativa".

O livro é longo e denso. A primeira parte vai até a página 188; elas são divididas em 79 pequenos capítulos. A segunda ocupa as páginas restantes, até a 485, divididas em mais 102 capítulos. É um daqueles livros que você não consegue parar de ler e que fica triste quando ele termina, porque você quer muito mais. Monumental Érico Veríssimo!


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