quinta-feira, 7 de março de 2024

Erico Veríssimo descreve AS MISSÕES. O tempo e o vento. O Continente. Vol. I

Tenho muitos orgulhos em minha vida. Um deles, e dos grandes, foi ter estudado e conhecido as terras missioneiras, uma das experiências mais fantásticas ao longo de toda a história. Li, do padre jesuíta suíço, Clóvis Lugon A República Comunista Cristã dos guaranis, um dos melhores livros que tenho em minha pequena, mas selecionada biblioteca. E de Umberto Eco trago a monumental frase de que o Papa Francisco é um jesuíta paraguaio, isto é, Francisco é um missioneiro, um herdeiro do espírito das missões. Tenho também músicas dos troncos missioneiros, músicos e payadores, da cidade de São Luiz Gonzaga, do coração da região missioneira do Rio Grande do Sul. Os padres jesuítas sempre admiraram a virtude musical dos guaranis. 

O tempo e o vento. (parte I). O Continente (Vol. I). Companhia das Letras.

Para situar e datar as Missões, algumas informações: As Missões ou Reduções, foram as experiências de colonização feitas pelos padres jesuítas alemães  em território paraguaio, isto é, reuniam os índios em aldeias (reduções) ou pequenas cidades, vivendo basicamente de forma coletiva. Tomo como datas referência, os anos de 1641, quando ocorreu a Batalha de M'bororé, em que os missioneiros rechaçaram os bandeirantes e 1750, quando ocorreu o Tratado de Madri, em que houve a troca entre os portugueses e espanhóis dos sete povos das Missões pela Colônia do Sacramento e o compromisso de - os dois povos - fazerem a limpeza da área, isto é, expulsar os indígenas dessas terras. Isso não ocorreu pacificamente. Ocorreram as chamadas guerras guaraníticas, das quais Sepé Tiaraju é o grande herói. Foram mais de cem anos de uma experiência apaixonante e muito bem sucedida. Hoje, sete das Reduções são Patrimônio da Humanidade. Duas no Paraguai, quatro na Argentina e São Miguel, no Rio Grande do Sul. Na época, tudo era Paraguai.

Érico Veríssimo, ao escrever sobre a formação de O Continente de São Pedro do Rio Grande, traz a sua história em retrospectiva e nos apresenta um de seus personagens, o fantástico índio Pedro Missioneiro, que com a sua relação com Ana Terra, dá origem aos Terra, da qual serão protagonistas Ana Terra, Pedro Terra e Bibiana Terra. Esta, ao se casar com Rodrigo Cambará, dará origem aos Terra-Cambará, personagens da épica formação do povo rio-grandense. Mas Érico também se entusiasmou com a experiência das Missões e assim as descreveu:

"Uma tarde, à hora do crepúsculo (foi no ano de 1750, por ocasião da Páscoa) Alonzo parou no centro da praça, contemplou a catedral e sonhou de olhos abertos com o Mundo Novo. Havia de ser algo tão belo e sublime que a mais rica das imaginações mal poderia conceber.

Os povos não mais seriam governados por senhores de terras e nobres corruptos. Seria a sociedade prometida nos Evangelhos, o mundo do Sermão da Montanha, um império teocrático que havia de erguer-se acima das nações, acima de todos os interesses materiais, da cobiça, das injustiças e das maquinações políticas. Um mundo de igualdade que teria como base a dignidade da pessoa humana e seu amor e obediência a Deus. Nesse regime mirífico o homem não mais seria escravizado pelo homem. Não haveria mais exaltados e humilhados, ricos e pobres, senhores e servos. Que direito tinha uma pessoa de se apossar de largas extensões de terra? A terra, Deus a fizera para todos os homens. O que era de um devia ser de todos, como nos Sete Povos. Todas as criaturas tinham direito a oportunidades iguais. Não era, então, maravilhoso transformar-se um índio pagão num cristão, num artista, num músico, num escultor, num ourives, num arquiteto? Quantos milhares de seres havia no globo que vegetavam na ignorância e na miséria por falta apenas de quem lhes iluminasse o entendimento, despertando-lhes o desejo de melhorar, de criar coisas úteis e belas com a mão e o espírito que Deus lhe dera!? Mas para conseguir esse mundo ideal era primeiro necessário combater todos aqueles que por indiferença ou egoísmo se negavam a baixar os olhos para os humildes. Alonzo, que fora sempre um estudioso da história, sabia que os homens em todos os tempos foram sempre levados ao pecado pelo diabo, e a arma de que o diabo mais se servia era o desejo de riqueza, poder e gozo. Para conseguir essa riqueza, essa força e esses prazeres, não hesitavam em escravizar as outras criaturas. E a melhor maneira de conservá-las em estado de escravidão era mantê-las na ignorância. Pagavam soldados não só para defender-lhes as vidas e os bens como também para alargar-lhes as conquistas. Mas esses senhores consistiam numa minoria. Ah! Um dia esses eternos humilhados, esses eternos escravos haveriam de tomar consciência de sua força e erguer-se! Mas era indispensável que tal levante se fizesse não em nome do ódio, da vingança e da destruição, mas sim em nome de Deus e da Suprema Justiça.

A missão da Igreja - e neste ideal extremado Alonzo sabia que estava só - devia ser a de promover essa revolução. O trabalho da Companhia de Jesus já havia começado na América. Era preciso primeiro conquistar o Novo Continente, livrar o índio da influência do homem branco, organizar uma grande república teocrática que depois, aos poucos, poderia estender a outras terras a sua influência e o seu exemplo. Ah! Mas para conseguir esse supremo bem os jesuítas seriam obrigados a usar meios aparentemente ignóbeis. Teriam de ser obstinados e implacáveis. No princípio seria necessário exercer uma ditadura justa mas inexorável. Não havia outra alternativa. Seriam os fiadores dessa Revolução em nome de Deus, pois o povo não estava ainda esclarecido, não sabia o que lhe convinha, e portanto podia ser facilmente ludibriado pelos poderosos. Era pois imprescindível que os sacerdotes exercessem na terra a ditadura em nome de Deus até que um dia (dali a quantos anos? cem? duzentos? mil? que importava o tempo?) fosse possível atingir aquele estado ideal, conseguir a igualdade entre as criaturas, a paz e a felicidade universal.

Agora, porém, era preciso lutar, pregar, instruir, influir no espírito das gentes, educar e disciplinar a juventude, exercer uma censura feroz em todos os setores da vida daqueles povos a fim de que eles se habituassem a pensar de acordo com a Ideia Nova. Um dia haveria sobre a face da Terra governos justos, e não mais instrumentos secretos e cruéis de satanás. Até lá, porém, era inevitável que os sacerdotes suassem sangue, não cedessem às fraquezas de seus corações, tivessem a coragem de parecer tirânicos. Seriam odiados, caluniados, perseguidos, apresentados como monstros. Os senhores do mundo haveriam de atirar contra eles expedições militares punitivas. Ah! Mas ele conhecia a história. A justiça de Deus estava visível nas entrelinhas dos fatos. Que significavam as guerras contínuas entre nações, ducados e principados senão que a humanidade vivia em desentendimento porque era corrupta e adorava o bezerro de ouro? Por que países como Portugal e Espanha vivam sempre em guerras? Era porque faltava entre os povos separados por línguas e costumes diferentes um elemento de unidade espiritual. Esse elemento de unidade, esse denominador comum das almas só poderia ser um: o temor e o amor a Deus. Era em nome de Deus que eles, soldados da Igreja, tinham de lutar. Não haviam de recuar diante de nenhum obstáculo. O fim era bom: todos os meios para chegar a ele seriam necessariamente lícitos". Páginas 64 a 66.

Deixo ainda dois posts sobre o tema das Missões: A resenha do livro do padre Clóvis Lugon: Mas antes a resenha do primeiro volume de O Continente.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-1-o-continente-vol-1.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/03/a-republica-comunista-crista-dos.html  E a afirmação de Umberto Eco, de que o Papa Francisco seria um jesuíta paraguaio.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/02/francisco-e-um-jesuita-paraguaio.html

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