quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Alabardas, alabardas. Espingardas, espingardas. José Saramago.

Em 18 de junho de 2010 morria o grande escritor da língua portuguesa e o seu único prêmio Nobel. Enquanto a vida se esvaía, ele ainda escrevia.  A última anotação que foi encontrada em seu computador foi escrita em 22 de fevereiro deste mesmo ano de 2010. Dizia o seguinte: "As ideias aparecem quando são necessárias. Que o administrador-delegado, que passará a ser mencionado apenas como engenheiro, tenha pensado em escrever a história da empresa, talvez faça sair a narrativa do marasmo que a ameaçava e é o melhor que poderia ter-me acontecido. Veremos se se confirma".
Alabardas, alabardas. O livro inacabado. A mensagem derradeira de pacifismo.
Saramago costumava comparar a vida à luz de uma vela. Antes de se apagar definitivamente ela soltava um derradeiro clarão. De agosto de 2009 a fevereiro de 2010 a vela da vida de Saramago elevou o seu clarão, como prenúncio de sua morte. E a narrativa, infelizmente, não se confirmou. Ela não avançou. Mas, palavras de Saramago, sempre serão palavras de Saramago, mesmo sendo poucas ou se forem apresentadas sob a forma de esboço. Isso aconteceu com Alabardas, alabardas, o fragmento daquilo que seria o último romance do autor. O tema não poderia ser mais instigante: a guerra. Alabardas, alabardas. Espingardas, espingardas ou ainda Produtos Belona SA., também foram candidatos ao título deste seu livro.

Só para situar, Alabarda é uma espada medieval e Belona é a deusa romana de origem etrusca ou não grega, da guerra. Do nome desta deusa deriva o adjetivo bélico. O tema desta obra inacabada, portanto, será a guerra e a indústria bélica. Mais provocador impossível. Saramago havia terminado de prestar contas com o Deus do Antigo Testamento através de Caim, no mesmo ano de 2009, mas queria nos deixar ainda um outro legado. O escrever era para o escritor uma espécie de fuga ou um adiamento da morte. Definitivamente, ele não queria morrer.
Uma das ilustrações do livro. Elas foram feitas por Günter Grass.

Artur Paz Semedo é o personagem principal. Ele divide o papel com Berta, que troca o seu nome por Felícia, ao saber que Berta era o nome de um canhão alemão, usado na primeira guerra. Artur e Felícia vivem separados. Artur é funcionário da Belona SA., uma indústria de armamentos. Felícia é uma militante pacifista. Os dois interagem e um é o contraditório do outro. Movimentam a dialética. Sempre "estavam a castigar-se um ao outro".

Fernando Gómez Aguilera, aquele organizador de As palavras de Saramago, ao escrever sobre o livro inacabado, numa espécie de posfácio ao livro, assim caracteriza os dois personagens: "Felícia, uma nova Blimunda (a mulher de Memorial do Convento) da paz, espelho de coerência moral e esperança de humanização, em face de um Artur Paz Semedo burocrata, fraco, adulador e apagado; indícios de sua ironia cética; o cenário de um grande conflito moral". Os dois vivem separados e mesmo separados movimentam toda a história. Se comunicam e interagem permanentemente e, teluricamente, existe uma possibilidade de reconciliação. "A dificuldade maior está em construir uma história 'humana'. Uma ideia será fazer voltar Felícia a casa quando se apercebe de que o marido começa a deixar-se levar pela curiosidade e certa inquietação de espírito", conta Saramago em seus apontamentos sobre o livro, encontrados em seu computador. Estes apontamentos, que nos mostram o processo de criação literária do escritor ocupa as páginas 59 a 61.
A ferocidade em mais uma ilustração de Günter Grass.

O livro tem três capítulos escritos, algo em torno de 50 páginas, na edição brasileira, com farta ilustração. São, no entanto, páginas extremamente preciosas e abrem fantásticas perspectivas no imaginário. Seria um livro vigoroso, uma grave denúncia provocada pela indignação em torno da indústria bélica e da necessidade de provocação de conflitos para a sua manutenção e continuidade. Artur resolve investigar os arquivos da Belona SA. e contar a sua história, delimitada à década de 1930. O administrador-delegado, ou o engenheiro o permite.

Os fatores que instigaram Saramago ao tema foram vários. O fuzilamento de trabalhadores em Milão, a não greve em fábricas de armamentos e a sabotagem na produção bélica. Gómez Aguilera narra um fato ocorrido na guerra civil espanhola, de um projétil lançado em Madri e que não estourou. Na desmontagem do detonador foi encontrado um bilhete, escrito pelo operário alemão que o produziu: "Camaradas: não temam. Os obuzes que eu carrego não explodem. Um trabalhador alemão". Além disso, o cenário de guerras da década de 1930, que seria o tema da obra. A guerra civil espanhola estava no seu horizonte imediato, mas olhava para mais longe, a segunda guerra mundial que se avizinhava.

A narrativa chegou até a guerra do Chaco entre a Bolívia e o Paraguai e continuaria com a guerra da Itália contra a Abissínia, contra a Etiópia. Infelizmente o vigor da vida lhe faltou. Apenas conseguiu reunir o esforço suficiente para nos legar as suas últimas preocupações: a denúncia de horrores e o anúncio de um pacifismo, que seria até capaz de reconciliar o burocrático Artur e a guerreira pacifista Felícia.  O livro tinha todos os ingredientes para ser inscrito, na obra do autor, como um de seus melhores livros. No entanto, a semente que instiga e que provoca foi lançada. Um livro imperdível. A frase final do livro  também estava pronta: "Vai à merda". Esta frase seria dita por Felícia. Saramago vibrava: "Um remate exemplar".
Foto de Saramago na orelha da contra-capa do livro inacabado.

Imperdíveis são também os três pequenos posfácios. Fernando Gómez Aguilera, Luiz Eduardo Soares e Roberto Saviano (de Gamorra) são os seus autores. O livro também vem acompanhado de ilustrações feitas por ninguém mais e ninguém menos do que Günter Grass. Alabardas, alabardas, de José Saramago é um lançamento da Companhia das Letras, do mês de setembro de 2014.

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