terça-feira, 1 de setembro de 2015

Minha Paris - Minha memória. Edgar Morin.

Eu aprecio enormemente a leitura de biografias e de memórias. Creio que isso se dá pela excelente oportunidade que oferecem para a contextualização de pessoas e de fatos históricos. Elas nos dão aquilo que eu classificaria como uma visão abrangente. Li ontem (25.08.2015) o livro de memórias de Edgar Morin, Minha Paris - Minha Memória. Acima de tudo é um grande poema de amor pela cidade, por tudo o que ela lhe proporcionou. O livro é um passeio pelos grandes fatos ocorridos ao longo do século XX,vistos pelos olhos do perspicaz observador. Ao final do livro lemos:
O maravilhoso livro de memórias de Edgar Morin. Minha Paris - Minha memória.

"Tantos rostos diversos de Paris se me apresentam, tantos encantamentos habitam minhas lembranças! Tanta poesia e tanta prosa! Eu conheci Paris na alegria, conheci Paris na fé, conheci Paris na emoção, conheci Paris no desespero". Creio que o momento mais denso foi aquele vivido no período da Resistência. Aí é que realmente se somou a alegria, a fé, a emoção e o desespero. Edgar Morin, para bem situá-lo, nasceu em 8 de julho de 1921 e conta hoje com 94 anos, vividos em estado de quase plenitude.

Antes de fazer a resenha propriamente dita, quero apresentar o que foi mais significativo para mim. Morin tinha em torno de trinta anos, quando, já após a guerra, foi fazer pesquisas na Biblioteca Nacional para preparar o seu livro O homem e a morte. Foi aí que se consolidou a formação do homem que se tornou famoso pela sua teoria do pensamento complexo. Cito duas passagens: "Pela primeira vez meu intelecto abria suas asas para sobrevoar disciplinas distintas e afinal mergulhar, como a águia em direção à presa, na informação interessante, registrando-a numa ficha. Eu fazia inúmeras descobertas, sentindo uma volúpia intelectual sem equivalente. Acumulava anotações numa quantidade cada vez maior de fichas, cada uma delas com um título provisório. Que maravilhosa viagem não foi aquela para mim, percorrendo a imensidão dos saberes imóvel em minha cadeira na Biblioteca Nacional! Creio que poderia passar ali minha vida. Era ao mesmo tempo monacal e gozoso, místico, austero e epicurista" (página 97). Mais adiante completa:
A contracapa do livro Minha paris - Minha memória.

"Embora o conceito de complexidade ainda não estivesse no meu horizonte, era um trabalho complexo que eu realizava ali: conexão entre conhecimentos distintos, em geral compartimentados, identificação de contradições que meu espírito hegeliano-marxista me levava a detectar em lugares onde são ignorados pelo pensamento binário" (página 98). Está aí a essência do grande pensador. Pergunto se já sentimos esta volúpia e encanto trazido pelo conhecimento e será que conseguimos imaginar o mundo se ele não fosse dominado pelo pensamento binário, da absolutização da oposição entre o bem e o mal.

O livro de 222 páginas está dividido em 11 capítulos, mais um posfácio. As memórias são evocadas numa ordem cronológica ao longo dos capítulos. No primeiro Sob os telhados de Paris, as memórias regridem à infância e à juventude, abrangendo os anos entre 1921 e 1940. São os anos de formação e de radicalização entre o fascismo nazista e o comunismo stalinista. Vejam: soluções binárias. É impressionante a presença do cinema e da literatura em seus anos de formação. O segundo capítulo é memorável Paris durante a ocupação. O período descrito é o dos anos de 1943 - 44, em que ocorre um momento raro de grandeza histórica: A Resistência.
 Alguns locais que eu consegui identificar. Ele estudava na Sorbonne, nas proximidades do Pantheon.

No terceiro capítulo, Paris para os parisienses (1944 - 45) são narrados os episódios relacionados com a recuperação da liberdade, os momentos de privações materiais e as divergências com o Partido Comunista e a ingerência soviética. Quem deveria ser condenado? O nazismo ou os alemães? No quarto capítulo, Em Saint Germain-des-Prés (1946-47) relata a sua grande aproximação com os intelectuais franceses, os seus debates e dúvidas com relação ao comunismo soviético e o jdanovismo imposto aos intelectuais comunistas. O clima da guerra fria já se faz presente. Já no capítulo V, De Vanvés a Rueil (1947-1957), as suas memórias evocam a sua expulsão do Partido Comunista, ato equivalente a uma excomunhão católica e os horrores da guerra da independência da Argélia. Ainda são evocados o XX PCUs, as denúncias contra Stálin e os episódios da Polônia e da Hungria. Aí também estão narrados os fatos de como se tornou um pesquisador, como vimos no início deste post.
Jardins de Luxemburgo, nas proximidades de sua residência em Montparnasse.

No Capítulo VI, Rue Sufflot (1957-1962), a Argélia continua como o tema dominante, mas também observa o rápido crescimento econômico e as novas necessidade de consumo que vão surgindo. Faz referências, ainda, ao acometimento de uma crise hepática, quando estava em Nova York. Já no capítulo VII, O Marais (1962-1979) continua a descrição da transformação de Paris, nos chamados "Trinta Gloriosos", que marcariam também o declínio da cultura operária e do Partido Comunista e abre o caminho para descrever 1968 em que explode o terreno minado da cultura ocidental. Descreve ainda as novas descrenças do mundo comunista e também conta de suas aventuras e desventuras amorosas. Revela interessantes confidências de sua vida amorosa.
Nas imediações do Quartier Latin e da Sorbonne, a catedral de Notre Dame.


No capítulo VIII, Da rue de la Pompe à praça d'Italie (1980-1984) se ocupa basicamente de Mitterrand, de suas relações com ele e de sua eleição para presidente. No capítulo IX, De volta ao Marais (1984-2009), já adentramos ao século XXI, mas passando antes pela queda do Muro de Berlim, do fim do comunismo soviético e chinês. Se entusiasma com o novo clima de liberdade e se frustra com os conflitos surgidos com os fanatismos etnico-nacionalistas-religiosos no coração europeu. Suas esperanças então recaem sobre a América Latina. No capítulo X, Em Montparnasse (2010), constata que a vida ainda o ama e passa a descrever minuciosamente o seu bairro, com o qual mostra muita afinidade e identidade. Festejou ainda a eleição de François Hollande e a condecoração recebida na Prefeitura de Paris, onde pronunciou o discurso do qual nasceria este livro.
A famosa Sorbonne, onde fez seus estudos.

No capítulo XI, O Metrô, se confessa um metrômano. Observe a beleza deste seu gosto. "... mas só me sinto bem no metrô. Gosto de contemplar a expressão das pessoas, eternamente espantado de ser um ser humano entre os seres humanos, cada um enfrentando os percalços da vida, defrontando-se com a tragédia da morte dos entes queridos e a perspectiva da sua própria morte. Observo os rostos para tentar encontrar o sentido do mistério da condição humana e da vida". No epílogo, reafirma a sua declaração de amor pela sua cidade e é onde se encontra a frase com que abrimos este post.
Ainda a Sorbonne no Quartier Latin. As memórias de Morin passam por aí.

Depois desta leitura, vou retomar outros dois livros seus, que eu já tenho, Os sete saberes necessários à educação do futuro e A cabeça bem-feita. E... fico imaginando... Se a formação do ser humano não fosse empreendida meramente dentro do espírito binário que move a cultura ocidental, especialmente, a partir do pensamento religioso. Um livro cheio de amor e de espírito humanístico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.