quinta-feira, 7 de julho de 2016

Sapato 36. Raul Seixas. Quem seria o pai?

No dia 2 de julho, na cidade de Londrina, tivemos um belo seminário de formação, promovido pelo grupo APP- Independente. Na abertura dos trabalhos foi lembrada a música Sapato 36, do grande Raul Seixas. Ela foi deixada para a livre interpretação de cada um dos participantes.

Hoje pretendo dar um passo inicial para esta interpretação, destacando duas ideias. A primeira sobre o incômodo do aperto do sapato, que creio que todo mundo, alguma vez, já sentiu e a segunda é sobre o ir embora. Faço a abordagem através de duas perguntas. Quem nos causa o incômodo e a dor e qual é o destino buscado ao anunciar o ir embora?
Neste DVD homenagem, Tico Santa Cruz interpreta Sapato 36.


A letra da música remete aos anos da ditadura militar, que certamente deu ao povo brasileiro um sapato, se é que deu, com um número ainda bem menor que o 36, tais os incômodos que ela causou. E o ir embora, remeteria a uma ida aos Estados Unidos, a chamada terra das liberdades e das oportunidades. Acho que é muito pouco. Na cabeça do Raulzito, muitas outras coisas deviam estar fervilhando.

Então vamos expandir. A ideia do pai opressor é uma imagem recorrente e onipresente na cultura ocidental. Com culpa ou sem culpa, o autoritarismo se estende de geração a geração através da figura do Pai. E o ponto culminante desta herança está na imagem de um Deus Pai. Um Pai sempre severo, com o qual as imposições morais que limitam os desejos humanos ganharam formas bem delineadas. Questão de mandamentos, sempre vindos do alto. Também o pai autoritário em nossas famílias se contrapõe à imagem generosa da mãe.

As diferentes concepções religiosas em muito contribuíram com a divisão social do trabalho, separando os seres humanos que pensam, daqueles que meramente executam. Os que pensam ditam as regras e os destinos. São eles que distribuem os sapatos 36 sem levar em conta que os nossos pés ou as nossas mentes já cresceram. E quanto mais crescemos, mais a dor da contenção e dos limites nos fazem sofrer, desde os tempos da saída da caverna para o confronto com a luz.  Pensar que não incomoda não é pensar, já nos alertava Saramago.

A dor é um sintoma. Sintomas são avisos para remover as causas da dor. Para eu descobrir que o sapato 36 não mais me serve e brigar por um 37 hoje, um 38 amanhã  e um 39 depois de amanhã... Livrar-se da dor pode ser ir para os Estados Unidos, a ilusória pátria das liberdades e das oportunidades. Livrar-se da dor é algo muito maior. Implica em visão telúrica, em utopias e em transcender. Partir, dificilmente se dá sem brigas, uma vez que a dor e o sofrimento está estruturalmente impregnada em nossa cultura. A briga contra as dores do mundo exige uma longa e permanente aprendizagem. Deixo a letra.


Eu calço é 37
Meu pai me dá 36
Dói, mas no dia seguinte
Aperto meu pé outra vez
Eu aperto meu pé outra vez

Pai eu já tô crescidinho
Pague prá ver, que eu aposto
Vou escolher meu sapato
E andar do jeito que eu gosto
E andar do jeito que eu gosto

Por que cargas d'águas
Você acha que tem o direito
De afogar tudo aquilo que eu
Sinto em meu peito
Você só vai ter o respeito que quer
Na realidade
No dia em que você souber respeitar
A minha vontade
Meu pai
Meu pai

Pai já tô indo-me embora
Quero partir sem brigar
Pois eu já escolhi meu sapato
Que não vai mais me apertar
Que não vai mais me apertar
Que não vai mais me apertar

Por que cargas d'águas
Você acha que tem o direito
De afogar tudo aquilo que eu
Sinto em meu peito
Você só vai ter o respeito que quer
Na realidade
No dia em que você souber respeitar
A minha vontade
Meu pai
Meu pai

Pai já tô indo-me embora
Eu quero partir sem brigar
Já escolhi meu sapato
Que não vai mais me apertar (Êêêê)
Que não vai mais me apertar (Aaaa)
Que não vai mais me apertar (Êêêê)



Como tenho os anarquistas em grande apreço, vai aqui ainda um pensamento do geógrafo anarquista francês Élisée Reclus, para nos acompanhar neste libertário ato de ir embora, com o sapato adequado para suportar a caminhada: "Não admitimos que a ciência seja um privilégio, e que homens empoleirados sobre uma montanha como Moisés, sobre um trono como Marco Aurélio, sobre um Olimpo ou um Parnaso de cartão, ou simplesmente sobre uma poltrona acadêmica, ditem-nos leis vangloriando-se de um conhecimento superior às leis eternas".

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