terça-feira, 6 de setembro de 2016

A cidade e as serras. Eça de Queirós. Vestibular da USP.

A minha chegada a este livro também se deu pela indicação dos livros para o vestibular da USP. Afinal de contas, a indicação de um livro para o vestibular da maior universidade brasileira sempre deve ser uma boa recomendação. E não teve erro. Para essa indicação também concorre todo o nome de Eça, conquistado pelos seus outros romances e a posição que ele ocupa dentro da literatura portuguesa.
Li esta edição. SESI-SP. Poderia ter uma contextualização melhor.

A cidade e as serras é o último livro do escritor. Eça nasceu em 1834 e morreu em 1900. O livro foi editado postumamente em 1901. Não contou com a sua acurada revisão, ao menos a sua parte final. A estrutura do romance é simples e já no título a sua temática é anunciada. A cidade e as serras. A cidade é Paris e as serras são as do norte de Portugal, as de Guiães, de Tormes, Tormes também dá o nome ao principal personagem da obra: Jacinto de Tormes. A obra se ocupa, pois, do contraste entre a cidade e o campo, a técnica e a natureza.

A cidade é Paris e em Paris há um endereço. Campos Elísios nº 202. A Champs Élysées  não é meramente a principal avenida de Paris. É uma das mais importantes avenidas do mundo. Paris é a civilização. O romance é ali ambientado e o tempo descrito é o da segunda metade do século XIX, um tempo de triunfo das ciências, da impregnação das ideias do positivismo e a ideia do progresso irreversível. Também é o tempo de ácidas e fulminantes críticas. Eh! Que maçada! Eh! que maçada! Sofrer é inseparável do viver! O tédio é uma lei universal! Esta será a sensação vivida por Jacinto, um rico herdeiro, cuja família remonta ao século XIV.
A famosa  Champs Élysée. O nº 202 desta avenida é o principal cenário da obra.

A primeira parte do livro, após situar os personagens, é toda dedicada a vida que Jacinto leva no fausto do 202 da famosa avenida. Vive num palácio, com todos os encantos e confortos da civilização, como a eletricidade, a água encanada, inclusive a água quente, elevador e telefone e uma biblioteca com trinta mil exemplares. Nem sempre tudo funciona a contento, especialmente, quando isso é mais esperado. Os hábitos são os mais refinados, as companhias as mais ilustres e os vinhos os mais rebuscados. O resultado, no entanto, é sempre e invariavelmente o tédio. De Salomão a Schopenhauer.

A crítica, embora não seja tão áspera como em obras anteriores, continua bem viva. Vou destacar uma, feita à burguesia e à religião. Ela é feita pelos dois grandes personagens, Jacinto e Zé Fernandes, no alto da igreja do Sagrado Coração, nas proximidades de Montmartre, uma das vistas mais impressionantes da cidade. A crítica primeiramente se dirige para a burguesia em ascensão: "O burguês triunfa, muito forte, todo endurecido no pecado - e contra ele são impotentes os prantos dos Humanitários, os raciocínios dos Lógicos, as bombas dos Anarquistas. Para amolecer tão duro granito só uma doçura divina". Depois sobra para a religião:
No alto, numa vista fantástica, junto a igreja do Sagrado Coração, um diálogo entre Zé Fernandes e Jacinto.

"Eis pois esperança da terra novamente posta num Messias!... Um decerto desceu outrora dos grandes Céus; e, para mostrar bem que mandado trazia, penetrou mansamente no mundo pela porta de um curral. Mas a sua passagem entre os homens foi tão curta! Um meigo sermão numa montanha, ao fim duma tarde meiga; uma repreensão moderada aos Fariseus que então redigiam o Boulevard; algumas vergastadas nos Efrains vendilhões; e logo, através da porta da morte, a fuga radiosa para o Paraíso! Esse adorável filho de Deus teve demasiada pressa em recolher a casa de seu Pai!". Na sequência, o emo tom.

Já quase ao final da obra, quando Zé Fernandes retorna momentaneamente a Paris, cita os dois grandes apetites da cidade: "encher a bolsa - saciar a carne".

Jacinto, depois de uma carta de seu feitor, contando de uma grande enchente em Guiães, que destroçara a capela onde estavam os restos mortais de seus familiares, decide fazer a restauração e estar pessoalmente presente na solenidade da translação dos ossos. Inicialmente se decide por levar a civilização a Tormes, por caixas e mais caixas de suas maravilhas. Estas, no entanto, se perdem pelo caminho. A não ser nos primeiros dias, já não mais lhes sente a falta
Eça de Queirós (1834- 1900). Um dos maiores escritores da literatura portuguesa.

A mesma paixão com que Jacinto se dedicara à civilização ele agora dedica a vida simples do campo. Passa a ser tocado por um impulso de remorso social e dá vida confortável a todos ao seu redor, construindo casas confortáveis, melhorando os soldos e construindo escola para as crianças. Jacinto passa a ser confundido com D. Sebastião, em sua triunfante e generosa volta. Descobre a beleza das serras, o encanto dos pássaros, o barulho das cachoeiras e os sabores do campo.

Jacinto que previra ser o último dos Jacintos, o seu ponto final se enlaça com uma bela menina, Joaninha, uma prima de Zé Fernandes e logo passa a ter um casal de filhos. Nem sequer volta a Paris, tarefa que ficará a cargo do narrador-personagem, Zé Fernandes. E o livro encerra com um belo parágrafo todo dedicado a uma volta ao romantismo, na pena de Zé Fernandes:

"Eu na verdade me parecia que, por aqueles caminhos, através da natureza campestre e mansa - o meu Príncipe, atrigueirado nas soalheiras e nos ventos da serra, a minha prima Joaninha, tão doce e risonha mãe, os dois primeiros representantes de sua abençoada tribo, e eu - tão longe de amarguradas ilusões e de falsas delícias, trilhando um solo eterno, e de eterna solidez, com a alma contente, e Deus contente de nós, serenamente e seguramente subíamos - para o Castelo do Grã-Ventura".

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