sexta-feira, 2 de setembro de 2016

O Cortiço. Aluísio Azevedo. Vestibular USP.

Aprendi um truque, para não passar vergonha, ao não ter lido um livro. A gente diz que está relendo ou que precisa reler. Mas este, eu de fato tenho que dizer que não o tinha lido. A indicação me veio através dos livros da lista do vestibular da USP, - FUVEST 2017. Trata-se de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, um escritor da corrente do naturalismo, um grupo mais extremado dentro do realismo. O romance foi publicado em 1890, mas retrocede um pouco no tempo, aos fins do império.
Uma bela edição de O Cortiço, da Moderna. Muito ilustrativa.

O romance é ambientado no Rio de Janeiro, no bairro de Botafogo, que é até onde o Rio da época chegava, na sua expansão para a zona sul. O Cortiço está em meio a palacetes. O cortiço específico do romance é, inclusive, vizinho de um palacete e seus moradores são, como os do cortiço, os personagens do livro. No palacete mora a família Miranda, Miranda e Estela, mais a filha Alzira e um adendo familiar chamado Botelho, um aproveitador sem escrúpulos.. O cortiço é de propriedade de um português, João Romão, que tudo faz para enriquecer. Os demais personagens do romance são os moradores do cortiço, quase todos desafortunados. Também há um outro cortiço na vizinhança, o Cabeça de Gato.

Miranda casou-se com Estela por causa de um rico dote. Tinha comércio na rua mais chique do Rio de Janeiro, a rua do Ouvidor. Estela não lhe era fiel, mas a vida de Miranda tinha que continuar. Os negócios prosperavam e era isso o que importava. A prosperidade e o crescimento da filha o levaram a morar no palacete, vizinho ao cortiço de João Romão.
Contraponto entre os palacetes e os cortiços. Uma imagem do Rio de Janeiro.

João Romão no começo tinha apenas uma casa comercial mas já acalentava o sonho da construção de quartos para alugar. Assim se formou o cortiço. João não tinha escrúpulos para realizar o sonho do enriquecimento, da prosperidade, seja na balança ou no troco. Aliou-se a Bertoleza, uma negra absolutamente ignorante, mas boa de trabalho. Assim ela atendia aos seus interesses. Economia, sovinice e trabalho era o resumo de suas vidas. Quanto mais dinheiro conseguia ajuntar, mais avarento ficava. Tinha também uma pedreira.

No cortiço desfilam os mais diferentes personagens. Os de maior destaque serão Jerônimo e Piedade, um casal de portugueses dados ao trabalho duro e a hábitos simples. O máximo que faziam era se entregar ao fado, num domingo pela tarde, Tinham uma menina, mas esta estava interna em um colégio. Jerônimo foi trabalhar na pedreira de João Romão. Piedade era uma das tantas lavadeiras e passadeiras do cortiço. A vida do cortiço sofreu grande mudança com a chegada de Rita Baiana. Ela logo enfeitiçou Jerônimo. Pombinha também ganhou grande destaque. Pelas cartas que escrevia soube da vida dos casais. O seu casamento mal e mal durou dois anos. Foi fazer companhia a Léonie na prostituição.

Léonie foi a protagonista de uma das primeiras cenas de lesbianismo na literatura brasileira, com a ainda púbere Pombinha, sem o consentimento desta. Quanto ao mais, o livro faz a descrição minuciosa do cotidiano do cortiço. Fofocas, arruaças, confrontos com a turma do Cabeça de Gato, incêndios, loucuras, casamentos feitos, desfeitos e refeitos. Também solidariedade e ajuda mútua entre os moradores. Outro personagem bem caracterizado é o sovina do Libório, um mendigo, que acumulara uma fortuna, da qual o João Romão se apropriou.
Aluísio Azevedo, um escritor que perdemos para o mundo da diplomacia.


A fortuna acumulada por João Romão o fez mudar de hábitos. Aburguesou-se. Começou a se interessar por Zulmira, a vizinha rica. Botelho, por dinheiro, fez a mediação. João Romão precisava agora se livrar de Bertoleza. A remeteu de volta à escravidão, de novo com a mediação de Botelho, mas ela não o permitiu. Preferiu uma saída mais honrosa, rasgando o seu ventre.

A obra de Aluísio Azevedo precisa ser lida dentro da escola do naturalismo. A sua tese central é o determinismo, marcado pelo meio ambiente social, pela raça, pelo momento e circunstâncias  vividas. É um livro cheio de preconceitos. É a arrogância do mundo das ciências. O seu valor é notório por ser uma crônica fiel deste período de grandes transições em nossa história. Imigração, pobreza, vida urbana incipiente, degradação moral de ricos e pobres. Os ricos se perdem na ânsia da ascensão econômica e social e os pobres pela total degradação do meio em que vivem. Outra questão muito forte é a total ausência e omissão do Estado com relação aos cortiços, focos de falta de higiene e de transmissão de doenças, que tanto afetaram o Rio de Janeiro da época.
O Cortiço também foi levado para o cinema.


Também entre os cortiços havia a hierarquia social. Assim o cortiço de João Romão virou um cortiço chique, de pessoas melhor empregadas, enquanto que o Cabeça de Gato recolhia toda a espécie de excluídos deste tempo e os que se perderam na inexorabilidade das fatalidades das misturas de raças e da contaminação dos ambientes sociais, os principais preconceitos que o autor faz desfilar na obra.

Para se ter uma ideia do que efetivamente era um cortiço, deixo a descrição do Cabeça de Gato, já quase ao final da obra. "E a mísera (Piedade - ex de Jerônimo), sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha, no Cabeça de Gato que, à proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável para sempre, o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma cama; paraíso de vermes; brejo de todo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão". Possivelmente a passagem mais significativa do livro.

Li a edição da editora Moderna, da coleção Travessias. Um primor. Notas explicativas e uma bela caracterização do naturalismo, fundamental para entender a obra. Um crônica fiel deste tempo histórico. A carreira diplomática encerrou com a carreira deste brilhante escritor, preconceitos a parte. Também o autor é um ser situado e datado.

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