sexta-feira, 23 de junho de 2017

A partir de Agamben - Reflexões em torno da delação premiada.

Sempre tive dúvidas com relação a qualquer tipo de delação. Não pertenço ao mundo dos crimes, mas com a minha formação, que compartilho com a maioria dos leitores, vivi acometido por culpas e remorsos. Coisas herdadas do cristianismo. Nem a confissão e a penitência me tranquilizavam. Mais do que as infrações cometidas, me arrepiava dividir as culpas com alguém. Sempre preferi assumi-las sozinho
O pequeno grande livro de Agamben Meios sem fim - Notas sobre a política. Coletânea de textos.

Gostei de uma das declarações de Marcelo Odebrecht que ia nesta direção e, alegava para isso, a formação recebida em família. Também sempre considerei que a investigação de crimes deve passar pela questão da investigação e da tecnologia e não por delações. A polícia deve estar aparelhada para o exercício de suas funções e isso requer o uso da técnica. As delações também trabalham com a questão do método, da forma dos interrogatórios. Não é nada confiável quando é possível imaginar que elas possam ser forçadas. Pensar isso em tempos em que o estado de exceção se transformou em regra, é apavorante, mas absolutamente possível.

Mas falar em estado de exceção é falar de Giorgio Agamben. E é exatamente este filósofo italiano que me leva a este post. Em seu livro Meios sem fim - notas sobre a política, encontramos já em suas reflexões finais um texto com o seguinte título. Neste exílio. Diário italiano 1992-1994. Nele encontramos uma interrogação, feita após uma série de reflexões sobre os acontecimentos da época. A interrogação é a seguinte: Do que se arrependem os italianos? A resposta é uma preciosidade e por essa razão a compartilho integralmente.

"Começaram como membros de brigadas e mafiosos, e, desde então, assistimos a um desfile interminável de rostos torvos em sua convicção, decididos no seu próprio vacilar. Às vezes, no caso dos mafiosos, o rosto aparecia na sombra para impedir que fosse reconhecido e - como da sarça ardente - escutávamos 'apenas uma voz'. Com essa voz profunda da sombra chama, nos nossos dias, a consciência, como se ele não conhecesse outra experiência ética fora do arrependimento. Precisamente aqui, no entanto, se trai a sua inconsciência, pois o arrependimento é a mais traiçoeira das categorias morais - aliás, não é nem mesmo certo se ela pertence à classe dos conceitos éticos genuínos. É conhecido o gesto decisivo com que Espinoza nega ao arrependimento todo direito de cidadania em sua Ética: quem se arrepende, escreve ele, é duas vezes infame, uma vez por ter cometido um ato do qual teve que se arrepender, e uma segunda vez porque se arrependeu dele. Mas quando, já no século XII, o arrependimento penetra com força na moral e na doutrina católica, logo se apresenta como um problema. Como provar, com efeito, a autenticidade do arrependimento?  Aqui o campo logo se divide entre quem, como Abelardo, exigia apenas a contrição do coração, e os 'penitenciais', para os quais importante não era, ao contrário, a insondável disposição interior do arrependimento, como o cumprimento de inequívocos atos exteriores. Toda a questão, portanto, se envolveu imediatamente em um círculo vicioso, no qual os atos exteriores deviam atestar a autenticidade do arrependimento e a contrição interior, garantir a genuinidade das obras, segundo a mesma lógica para a qual, nos processos atuais, denunciar os companheiros é garantia da veracidade do arrependimento e o arrependimento íntimo sanciona a autenticidade da denúncia.

Que o arrependimento tenha ido parar nas salas dos tribunais não é, de resto, um acaso. A verdade é que ele se apresenta desde o início como um compromisso equívoco entre moral e direito. Através do arrependimento, uma religião, que havia ambiguamente chegado a um acordo com o poder mundano, procura sem êxito dar razão ao seu compromisso, instituindo uma equivalência entre penitência e pena, entre delito e pecado, mas não há indício mais certo da ruína irreparável de toda experiência ética que a confusão entre categorias ético religiosas e conceitos jurídicos, que chegou hoje ao seu paroxismo. Atualmente, onde quer que se fale de moral, as pessoas têm categorias do direito na ponta da língua, e onde quer que  façam leis e processos, a serem manejados como obscuros feixes de lictor (Em italiano, fascio littorio: símbolo de origem etrusca, associado ao poder e à autoridade, que foi usado pelo Império Romano e pelo fascismo na Itália), são, ao contrário, conceitos éticos.

Tanto mais irresponsável é a gravidade com que os laicos se apressaram a cumprimentar a entrada do arrependimento - como ato incontestável de consciência - nos códigos e nas leis. Pois se realmente desventurado é quem é constrangido por uma convicção inautêntica a jogar toda a sua experiência interior em um conceito falso, para ele ainda há, talvez, uma esperança. Mas para os mediocratas que se vestem de moralistas e para os maîtres à penser televisivos, os quais em sua desventura edificaram vitórias pedantes, para estes, não, não há realmente esperança".  AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim - notas sobre política. Autêntica. Belo Horizonte - São Paulo. 2015. pp. 115-117. A edição brasileira é de 2015.

Se tivesse sido escrito por encomenda para a atual realidade brasileira da Lava Jato, não poderia ter saído melhor. Boas reflexões. Ouvi um amigo dizer que, como todos estão delatando todos, todos serão absolvidos. E felizes continuarão praticando os mesmos atos, pois não carregam a culpa cristã. Dela já conseguiram se libertar, embora se confessem extremamente religiosos.

2 comentários:

  1. Ontem ao assistir trechos do "concílio" do STF em que verbalmente se engalfinharam o Ministro Barroso e o indefecto Gilmar Mendes, a escolha dos termos era extremamente criteriosa, ora era "delação premiada" ora "colaboração" e louvo a verve do Min Barroso que colocou-se já em posição contrária ao que já se avista mais a frente, a consumação da premiação pela tal "colaboração" com as benesses de praxe.

    ResponderExcluir
  2. O que já aconteceu com o Yuossef. Agradeço o seu comentário, SUCAPOETA.

    ResponderExcluir

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.