segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Velhice. Do livro "8 décadas", de Carolina Nabuco.

A leitura é o ato mais fascinante que pode existir. Ontem, ainda, alguém reclamou sobre a brevidade da vida e a consequente impossibilidade de ler tudo o que se gostaria. Mas a gente vai se esforçando. Estou terminando de ler um livro fantástico. Cheguei a ele através de Mary del Priori, com o seu Histórias da gente brasileira, o terceiro volume, em que ela fala dos primeiros sessenta anos de nossa república. Ela privilegia os memorialistas. Carolina Nabuco, a filha do grande Joaquim Nabuco, com o seu livro - 8 décadas, é das mais citadas. Quero aqui reproduzir uma parte de um dos capítulos, quando ela descreve a chegada da velhice. O texto é muito bonito e como existem poucos relatos sobre este tema, tomo a liberdade de apresentá-lo.
O maravilhoso livro de memórias de Carolina Nabuco (1890-1981).



"A velhice chega à vezes tão lentamente que nem a vemos chegar. Nosso primeiro contato com ela pode ter uma causa mínima como sentir um braço amigo oferecendo-nos apoio num caminho onde não existia embaraço, ou ouvir uma voz amiga murmurar 'olhe o degrau', num aviso dispensável.

A primeira vez que estendi a mão a minha mãe para ajudá-la a descer de um bonde, ela se aborreceu.
- Não é preciso, - disse.
É possível que eu também tenha afastado em meu tempo algum auxílio prematuro. Há muito, porém, que concordo com o pensar de Cícero, que, no ensaio De senectute, confessou o prazer que encontra nas pequenas atenções que provam sua autoridade de velho, autoridade esta

'resultante não de nossas rugas nem de nossos cabelos brancos, mas daquilo que os anciãos possuem como frutos derradeiros de suas virtudes na vida.  Embora possa parecer trivial ou frívolo, é honroso receber cumprimentos; ver uma pessoa caminhar ao nosso encontro; levantar-se ao chegarmos, acompanhar-nos, reconduzir-nos, consultar-nos. Esses modos de proceder, correntes entre nós, existem igualmente em outras terras, onde os velhos recebem tanto cuidado quantos os mores são mais cultos. Seja exemplo a Lacedônia, onde se honra a idade mais que em qualquer outra terra. Contam que certa vez em Atenas um ancião, não havendo encontrado lugar num teatro, dirigiu-se aos embaixadores da Lacedônia, e estes lhe cederam logo um assento. Que volúpia dos sentidos pode se comparar com as que procedem dessas prerrogativas? Elas permitem aos que gozaram de esplendor verem terminar o drama de sua vida sem os desacertos ou falhas que às vezes podem suceder no último ato a atores inexperientes' (De senectute, pág. 71).

O importante na velhice é poder encher tempo e pensamento com ocupações adequadas à idade. Diz Cícero no mesmo belo ensaio que a ocupação mais confortadora para ele foi a jardinagem. Devia ser muito belo o jardim em que se comprazia na sua vivenda da velha Roma. De fato o revolver da terra e do solo, sempre submissos às nossas intenções, sempre prontos a dar, oferecer aos dedos dos velhos um recurso poderoso e secreto, uma fonte de frescura e repouso, uma porta aberta ao gozo das flores em jardins ou das frutas em pomares.

A exemplo de Cícero, Francis Bacon (o mesmo lorde Bacon a quem, em certo momento, foi atribuída a autoria das obras de Shakespeare) escreveu sobre jardins com precisão e beleza:
'Foi Deus quem plantou o primeiro jardim. E este é em verdade o mais puro dos prazeres humanos, o maior refrigério espiritual. Ao seu lado edifícios e palácios não passam de artefatos grosseiros'.

É bem típico do sentir inglês esse amor de Bacon por jardins. Em nenhum país o florescer de canteiros causa tanta alegria. Parque do tipo Versailles, onde o verdor de plantas é talhado formalmente, não podem merecer o mesmo agrado que os floridos canteiros de um English garden.

Na sua casa da Rua barão do Flamengo, mamãe só tinha por jardim um estreito, e raramente florido, canteiro que corria ao longo do muro vizinho. No fundo, havia dois pés de oleandro vermelho (espirradeira) que tentavam invadir a casa pela sala de jantar.

Em Petrópolis, embora não fosse grande, seu jardim era maior que o do Rio porque subia morro acima. No verão o declive do morro cobria-se com um manto de hortênsias, e se tornava todo azul.

Mamãe distraía-se conduzindo uma lata absorvente contra as formigas de Petrópolis, que, às vezes, numa só noite, lhe depenavam as roseiras. Acompanhei, durante a velhice de minha mãe (repetida pela minha nesse ponto de jardinagem e em muitos outros) a alegria que ela sentia com o primeiro botão numa roseira por ela plantada, ou o abrir de um galho florescente num arbusto cujo crescimento a alegrava. Encontrava em seus modestos canteiros um prazer certamente igual ao que conhecem os os donos de grandes terras quando frutificam suas árvores, sorriem seus campos ou vermelhejam seus cafezais.

Ocorrem-me muitos outros recursos de que os velhos podem se valer. Nem todos porém são tranquilos como a jardinagem. Conheci nos Estados Unidos uma nonagenária, ativa, saudável e de grande fortuna, cuja paixão era o teatro.Não perdia uma peça que merecesse ser vista, valendo-se da grande escolha que Nova York - onde morava - sempre oferece.

Como não ficaria bem a uma grande dama sair à noite desacompanhada, tinha como hóspede permanente de sua casa um senhor de meia-idade e de boa aparência (creio que parente seu) que se achava sempre pronto para envergar seu black tie para lhe servir de escort quando ela resolvia sair para um espetáculo ou uma  exposição.

Não me constou que ela fosse assídua a concertos, gosto que eu teria compreendido melhor, pois a música, como as flores, é boa para qualquer idade. Um dos piores aspectos da velhice é o tédio de reouvir o que já foi ouvido muitas vezes, ou contemplar o que já foi visto à saciedade. Com o passar dos anos tudo tende a ser repetição, e são poucas, infortunadamente, as coisas que não cansam nunca: certos aspectos da natureza, o riso das crianças, a verdadeira simplicidade.

A velhice inteligente é a que aceita suas condições sem reclamar contra as misérias e dissabores da idade, e aproveitando as vantagens que possam surgir. Lembra bem Emerson que, para quem chega ao fim da corrida, os contratempos ou erros perdem muito a significância. Quando as contas da nossa vida já estão feitas e concluídas, um fracasso a mais ou a menos desaparece facilmente entre os créditos registrados. Acontece o contrário com os prazeres menores, inclusive os da comida. Estes, muitas vezes, adquirem graça nova.

Entre as observações mais acertadas que conheço sobre as idades da vida incluo este pensamento de meu pai, que se encontra no seu pensées détaches: 'A juventude é a surpresa da vida. Quem não a sente mais não é jovem e jovens são todos os que a conservam'.

Há velhices mais felizes que outras. Ninguém, porém, pode contar com a promessa feita a Aser na Bíblia: 'Tua velhice será como os teus dias de juventude' (Deuteronômio XXXIII, 25). Ninguém pode evitar a diminuição da força vital, a baixa do calor humano. Este é o primeiro sintoma da velhice, e pode se efetuar com maior ou menor rapidez.

Encontro uma referência a essa redução do calor humano numa carta de meu pai a seu amigo Machado de Assis. Falando de Graça Aranha, que, como secretário e amigo, foi o companheiro dileto dos últimos anos de Joaquim Nabuco, e pertencia a uma geração mais nova, escreveu meu pai: 'Ele me aquece mais do que eu o esfrio'.

A redução do calor humano e, com ele, a do poder de atrair e de ser atraído, de amar e de ser amado, traz o espectro do isolamento, uma das maiores cruzes da velhice. Os anos normalmente tendem a diminuir, ou a destruir, nosso interesse pelas coisas que vão pelo mundo e por isso nosso próximo em conjunto ou individualmente. E esse nosso desinteresse se encontra sempre, para seu castigo, o desinteresse dos outros por nós.

Os velhos carregam o peso de uma bagagem de experiência e de detritos que os separa do mundo, e os impede de acertar passo com os que palmilham estrada ainda limpa. Podemos evitar a solidão se soubermos fazer doação de nossa experiência de modo a interessar e não a entediar os ouvintes; e que faça reviver nosso passado para eles. Interessá-los será tanto mais fácil quanto lhes houvermos conquistado a afeição.

Feliz entre todas é a velhice assistida por afeições de jovens. Sei-lhe o valor pela minha própria experiência, tanto da infância quanto da velhice, tanto pelo que me coube dar a velhos outrora quanto pelo que, graças a Deus, recebo hoje dos mais novos. Sei que as crianças não são avaras de sua luz e do seu carinho, mas generosas em iluminar ou aquecer as existências que chegam à etapa final. Nunca custa dar o supérfluo. Lembro-me de, em criança e em moça, ter achado prazer em externar afeição, não, decerto, a qualquer velho, mas especificamente de ter sentido esse prazer em relação a meu avô materno e a minha madrinha Zizinha. Tive convivência com uma ou com outra velhice antes de chegar à minha própria, principalmente com a da minha mãe e de minha madrinha. Ambas foram velhices tranquilas, boas de acompanhar.

Nunca me achei fisicamente parecida com minha mãe, talvez porque preferisse pensar que o era com meu pai, mas a parência com minha mãe existia sem dúvida, pois acontece às vezes um espelho me devolver de repente a imagem de minha mãe em velha. Nem todas as velhices são boas. Por fidelidade a um afeto que me havia sido valioso em outras idades da vida, dediquei tempo e carinho aos últimos anos de uma amiga cuja vida correra pouco adiante da minha.

Para distrair esta pessoa que me havia sido boa companhia, e a quem dediquei verdadeira afeição, valia-me, nos seus últimos anos, dos assuntos capazes de lhe despertar interesse, mas infelizmente eram fúteis e mínimos. Só lhe prendiam a atenção casos pequenos e pessoais. Não se cansava de recordar os êxitos mundanos que - bonita que fora - lograra conquistar. Só lhe aprazia falar de si.

O mundo, em que outrora brilhara, não podia mais lhe dar satisfação, e ela não reunira acervo de interesses permanentes. A velhice achou-a assim verdadeiramente desprovida. Estas velhices fechadas em egoísmo são raramente respeitáveis.

Perdida a beleza do rosto, a graça e esbelteza da figura, só pode restar a homens e mulheres a dignidade do porte e a bondade no trato. E os anos têm a infeliz tendência de emprestar dureza a muitas fisionomias.

A graça da velhice deve ser tranquila. Considero como uma bênção do céu uma velhice agradável aos olhos como foi a da baronesa de Bonfim. Tão alva de cabelo quanto de cútis, tão fina de traços quanto de mãos e de gestos, sua beleza serena e rara tinha a suavidade de uma luz de vela, iluminando o salão onde reunia amigos e admiradores de toda idade.

A maior tristeza que a velhice pode trazer é a de nos desiludir sobre nós mesmos, de verificarmos que não somos quem pensávamos. Os defeitos de caráter tendem a se acentuar com a idade e não encontram mais a tolerância que podem ter merecido em épocas mais aprazíveis.

O direito de abençoar é um privilégio da velhice de que me valho sempre que posso. Até a desconhecidos na rua me acontece abençoar de longe, apenas com um olhar. As palavras 'Deus te abençoe', ditas ou pensadas, estabelecem um contato em forma de triângulo, com Deus por base. No caso de transeuntes na rua elas me vêm como um súbito eflúvio de compreensão, em geral nascido de comiseração. Ainda hoje surpreendi-me duas vezes quase murmurando God bless you (em inglês, sim, pois muitas vezes rezo em inglês ou em francês, como aprendi a fazer em minha infância). Das duas pessoas a quem dirigi essa bênção secreta, uma era um velho que esperava numa esquina o momento de atravessar a rua. Tinha uma cara decente, paciente, em que me pareceu ver a marca de uma vida decorrida sem recompensa. A outra foi um rapazinho que entrou na igreja onde eu me achava. Tirou um terço do bolso e pôs-se a rezar. Este me pareceu demasiado desarmado para os perigos que espreitam moços do seu tipo. Transpirava inocência. Cheguei a ambas essas conclusões instintivamente, sem pensar, sem interferência de raciocínio.

Há dias vi o capelão da igreja que eu frequento caminhando na rua com ar de extremo cansaço. Gostaria de saber se minha piedade calada lhe comunicou de longe o encorajamento de que estava precisando.

Tenho aliás grande curiosidade de saber se uma simples intenção benéfica pode se transmitir. Admito a hipótese de que esses votos-preces despertem alguma onda no espaço e no tempo. Afinal, o poder da oração é - como reconheceu o cientista Alexis Carrel no livro L'homme cet inconnu - uma das forças ignotas para a ciência, mas inegavelmente existentes neste mundo de mistério". Páginas 226 a 232. O livro segue com "Deus em minha vida".




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