segunda-feira, 4 de junho de 2018

Futebol ao sol e à sombra. Eduardo Galeano.

Lendo o livro/entrevista A verdade vencerá - o povo sabe porque me condenam, me deparei várias vezes nas referências que o presidente Lula fazia ao livro de Eduardo Galeano, Futebol ao sol e à sombra. Assim, literalmente, posso dizer que o li por uma indicação do presidente Lula, e, devo dizer, que sábia indicação. O livro é da L&PM-Pocket. A primeira edição é de 1995, mas a que li é de 2018. Ela tem acréscimos que vão até a copa de 2014, realizada no Brasil. Eduardo Galeano não fará novas considerações, pois, lamentavelmente, nos deixou em abril de 2015.
O livro é de 1995, mas foi atualizado até a copa de 2014.

O livro é uma mini enciclopédia de futebol, escrita com duplo sentimento, o de um apaixonado pelo esporte, mas também, o de alguém muito decepcionado com o mesmo. Ele se burocratizou tanto, até lhe retirarem a alegria do gol. É só defesa. Lhe retiraram a graça do drible e da ousadia, para torná-lo força, velocidade e obediência. Somente atos de insubordinação lhe concedem vitórias e toques de beleza, como aconteceu em 2002, quando os Rs brasileiros, Ronaldo, Ronaldinho, Rivaldo e Roberto Carlos se impuseram ao tecnocrata e militarizado técnico Scolari e conquistaram o mundial de 2002.

Deveria ter aberto o post com a dedicatória do livro, que é também, a frase em epígrafe: "As páginas deste livro são dedicadas àqueles meninos que uma vez, há anos, cruzaram comigo em Calella da Costa. Acabavam de jogar uma pelada, e cantavam - Ganamos, perdimos - igual nos divertimos. Devo também mencionar uma frase, que mereceu o destaque da contracapa. Perguntaram a uma teóloga alemã, como ela explicaria a felicidade? A resposta veio pronta: "Não explicaria, respondeu. - Daria uma bola para que jogasse". Creio que estas frases evidenciam toda a paixão de Galeano pelo futebol. O livro é uma ótima sugestão de leitura para tempos de copa.

O livro é escrito sob a forma de pequenos tópicos, que não chegam a condição de capítulos ou tratados, embora revelem a realização de muita pesquisa. Ele flutua na alegria do jogo, as paisagens ao sol, e mergulha nas profundezas da corrupção, da degradação, do racismo, da mercantilização dos atletas, nos desmandos da FIFA, mancomunada com as empresas de material esportivo e com as emissoras de televisão, o seu reverso de sombras. O futebol hoje, com seus "pés de obra", integra a triste "sociedade do espetáculo", com todas as suas nefastas consequências.

Os tópicos iniciais são de pura alegria, dedicados ao espetáculo proporcionado pelo futebol. Os artistas e malabaristas criando momentos de absoluta imprevisibilidade. Pernas nos ares, lembrando a capoeira, fazendo gols de chilena, ou, seriam de bicicleta. Dribles e bailados à moda Charles Chaplin se transformavam em explosões de alegria.

Vou me deter, neste momento, em paisagens sombrias, anunciadas já no início do livro. Elas envolvem a origem popular do esporte e expõem a terrível questão racial, tão peculiar ao futebol, uma vez que em esportes como o automobilismo e no Tênis, nem sequer os encontraremos. Ao longo da leitura selecionei algumas frases. Vejamos uma primeira: : "Como o tango, o futebol cresceu a partir dos subúrbios. Era um esporte que não exigia dinheiro e que podia ser jogado sem nada além da pura vontade. Nos baldios, nos becos e nas praias, os rapazes nativos e os jovens imigrantes improvisavam partidas com bolas feitas de meias velhas, recheadas de trapos ou de papel, e um par de pedras para simular o arco. Graças a linguagem do futebol, que começava a tornar-se universal, os trabalhadores expulsos do campo se entendiam muito bem com os trabalhadores expulsos da Europa" (38).

Vejamos mais sobre as suas origens, agora no Brasil: "Simultaneamente, o futebol se tropicalizava no Rio de Janeiro e em São Paulo. Eram os pobres que o enriqueciam, enquanto o expropriavam. Este esporte de estrangeiro se fazia brasileiro, na medida em que deixava de ser o privilégio de poucos jovens acomodados, que o jogavam copiando, e era fecundado pela energia criadora do povo que o descobria. E assim nascia o futebol mais bonito do mundo, feito de jogo de cintura, ondulações de corpo e voos de pernas que vinham da capoeira, dança guerreira dos escravos negros e dos bailes alegres dos arredores das grandes cidades" (39).

Selecionei também um ignominioso decreto de 1921. "Em 1921, a Copa América ia ser disputada em Buenos Aires. O presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, baixou um decreto de brancura: ordenou que não se enviasse nenhum jogador de pele morena, por razões de prestígio pátrio. Das três partidas que jogou, a seleção branca perdeu duas" (49). Antes, em 1916, O Uruguai goleou o Chile por 4X0. O Chile pediu a anulação do jogo porque o Uruguai escalara dois jogadores negros (46).  

O tema do racismo volta fortemente na copa de 2006, disputada na Alemanha já reunificada e que foi vencida pela Itália, que se impôs ao time francês. Exatamente as declarações de políticos, diretores e de parte da mídia destes países envergonhavam o processo civilizatório da humanidade. O colonialismo e seus fundamentalismos de origem racial e religiosa parecem ser insuperáveis. Ao contrário, são zelosamente cultivados.
E, entre estas histórias, também histórias de futebol.

Para mim, além deste destaque político da obra, tão peculiar em Galeano, o histórico das copas também merece destaque especial. Ele sempre é antecedido por uma pequena, mas valiosa contextualização da política mundial na época de sua ocorrência. Ela se constitui em uma verdadeira aula de geopolítica. Nela ganham destaque as invasões dos Estados Unidos a países que carregam "a culpa de terem petróleo" e a repetição proposital de um mantra sobre Fidel Castro e a sua iminente e permanente queda do poder. "Fontes bem informadas de Miami anunciavam a queda iminente de Fidel Castro, que ia despencar em questão de horas". Esta é a frase mais repetida no livro.

Eduardo Galeano deve ter adorado escrever o livro. Isso está demonstrado no primeiro encerramento, em 1995. Aí encontramos também as razões por tê-lo escrito: "Há muitos anos me senti desafiado pelo tema, memória e realidade do futebol, e tive a intenção de escrever algo que fosse digno desta grande missa pagã, que é capaz de falar tantas linguagens diferentes e pode desencadear tão universais paixões. Escrevendo, ia fazer com as mãos o que nunca tinha sido capaz de fazer com os pés: perna de pau irremediável, vergonha das canchas, eu não tinha outra solução senão pedir às palavras o que a bola, tão desejada, me tinha negado.

Desse desafio, e dessa necessidade de expiação nasceu este livro. Homenagem ao futebol, celebração de suas luzes, denúncia de suas sombras. Não sei se ele é o que quis ser, mas sei que cresceu dentro de mim e chegou à sua última página e agora, já nascido, se oferece a vocês. E eu fico com essa melancolia irremediável que todos sentimos depois do amor e no fim do jogo". E eu, na minha modesta situação, fico a lamentar que ele - cada dia mais - esteja sendo disputado às sombras.

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