terça-feira, 19 de junho de 2018

O futebol nativo. Eduardo Galeano.

Tomo este texto do livro - Futebol ao sol e à sombra, - de Eduardo Galeano, para dar uma pequena amostra da sua grande e rara beleza . Como o título indica, o futebol é praticado à luz e à sombra. À luz, quando ele ocorre nos campos e quando os atletas são os protagonistas. Já à sombra, quando ele é praticado nos bastidores, nas tramoias entre os cartolas, FIFA no comando, os proprietários das marcas de material esportivo e os magnatas das emissoras de televisão. Estes  são  apontados como os responsáveis por terem tirado a alegria do futebol, quando o transformaram em instrumento de seus escusos interesses e a estes tudo submeteram. Somam-se ainda os técnicos burocráticos por impedirem os dribles e o gol, a razão maior deste esporte.
Como amostra, tomo um dos tópicos. O livro tem este formato. No tópico escolhido, Galeano mostra a origem elitista deste esporte e que, aos poucos e cada vez mais, se transformou na alegria do povo. O tópico tem por título:
O belo livro de Eduardo Galeano. O original é de 1995, mas tem atualizações até a copa de 2014.

O FUTEBOL NATIVO

A Argentine football Association não permitia que se falasse em espanhol nas reuniões de seus dirigentes, e a Uruguay Assossiation Football League proibia que as partidas fossem disputadas aos domingos, porque o costume inglês mandava jogar aos sábados. Mas já nos primeiros anos do século o futebol estava começando a se popularizar e a se nacionalizar, nas margens do rio da Prata. Esta diversão importada, que entretinha os ócios dos meninos das boas famílias, tinha escapado de sua alta jardineira, havia baixado à terra e estava lançando raízes.

Foi um processo irreversível. Como o tango, o futebol cresceu a partir dos subúrbios (recentemente estive no Caminito berço do tango e vizinho do Boca). Era um esporte que não exigia dinheiro e que podia ser jogado sem nada além da vontade. Nos baldios, nos becos e nas praias, os rapazes nativos e os jovens imigrantes improvisavam partidas com bolas feitas de de meias velhas, recheadas de trapos ou de papel, e um par de pedras para simular o arco. Graças a linguagem do futebol, que começava a tornar-se universal, os trabalhadores expulsos do campo se entendiam muito bem com os trabalhadores expulsos da Europa. O esperanto da bola unia os nativos pobres com os peões que tinham atravessado o mar vindos de Vigo, Lisboa, Nápoles, Beirute ou da Bessarábia, e que sonhavam fazer a América levantando paredes, carregando caixotes, assando pão ou varrendo ruas. Linda viagem, a que havia feito o futebol: tinha sido organizado nos colégios e universidades inglesas, e na América do Sul alegrava a vida de gente que nunca tinha pisado numa escola.

Nas canchas de Buenos Aires e de Montevidéu, nascia um estilo. Uma maneira própria de jogar o futebol ia abrindo caminho, enquanto uma maneira própria de dançar se afirmava nos pátios milongueiros. Os bailarinos desenhavam filigranas, fazendo floreios num tijolo só, e os futebolistas inventavam sua linguagem no minúsculo espaço onde a bola não era chutada, mas retida e possuída, como se os pés fossem mãos trançando o couro. E nos pés dos primeiros virtuoses nativos nasceu o toque: a bola tocada como se fosse violão, fonte de música.

Simultaneamente, o futebol se tropicalizava no Rio de Janeiro e em São Paulo. Eram os pobres que o enriqueciam, enquanto o expropriavam. Este esporte estrangeiro se fazia brasileiro, na medida em que deixava de ser o privilégio de uns poucos jovens acomodados, que o jogavam copiando, e era fecundado pela energia criadora do povo que o descobria. E assim nascia o futebol mais bonito do mundo, feito de jogo de cintura, ondulações de corpo e voos de pernas que vinham da capoeira, dança guerreira dos escravos negros, e dos bailes alegres dos arredores das grandes cidades.

O futebol ia se tornando paixão popular e revelava sua beleza secreta, e ao mesmo tempo se desqualificava como passatempo fino. Em 1915, a democratização do futebol arrancava queixas à revista Sports, do Rio de Janeiro: De modo que nós que frequentamos uma Academia, temos uma posição na sociedade, fazemos a barba no Salão Naval, jantamos na Rotisserie, frequentamos as conferências literárias, vamos ao five o'clock... somos obrigados a jogar com um operário, limador, torneiro mecânico, motorista e profissões outras que absolutamente não estão em relação com o meio onde vivemos. Nesse caso a prática do esporte torna-se um suplício, um sacrifício, mas nunca uma diversão (Página 37 a 39.

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