domingo, 2 de setembro de 2018

Casei com um comunista. Philip Roth.

Uma das minhas preocupações atuais tem sido compreender as fontes e as razões do ódio presente na sociedade brasileira, no entorno do golpe midiático, judicial e parlamentar de 2016.  Nunca em minha já longa vida tinha visto algo parecido. Me intriga, especialmente, a situação vivida nas escolas do Paraná, onde se instaurou um clima de perseguições, a maioria delas fundadas em denúncias anônimas. Por processos administrativos sumários pessoas são afastadas de suas funções e até os salários (de sal) chegam a ser suspensos. O ódio penetra até no campo dos meios de viver. Governos vazios de projetos nos fazem parecer viver e continuar a viver O deserto dos Tártaros. Uma sensação de que isso não terá fim. Vejam o triste cenário da sucessão ao governo estadual. Uma trágica continuidade.


Nas ruas vi cenas inimagináveis e na TV declarações bombásticas  de ameaças banais de mortes premeditadas em virtude de possíveis delações (Tem que ser alguém que a gente mate antes... - simples assim). Quais seriam as causas de tanto ódio e de tanta infelicidade. Até parece que o maior gerador de felicidade é a geração de infelicidade para o outro. É um regozijar-se com esta perspectiva. Vivemos num mundo totalmente fora de qualquer padrão de racionalidade. Parece que existe um querer, um por chumbo nas bases da pirâmide social e evitar qualquer possibilidade de ascensão e de cidadania. Em síntese vivemos em um Estado Penal pós democrático.

Este clima, e mais precisamente o movimento "Escola Sem Partido" me fez pensar em literatura sobre o tema e me deparei com um de meus autores preferidos, Philip Roth, com o seu livro Casei com um comunista. O autor é um especialista em devassar a sociedade americana, em pô-la no divã da psicanálise e fazê-la regurgitar de suas entranhas. A América, as oportunidades, a democracia, a família e a moral. E o ódio. O ódio devotado a quem pensa diferente. O momento de maior expressão deste ódio foi o do pós guerra, o período do chamado Macarthismo, especialmente, entre os anos de 1946 e 1956. Este movimento se expandiu mundo afora pela chamada Ideologia da Segurança Nacional, aguçada pela Bipolaridade e pela Guerra Fria.

Casei com um comunista é o relato da vida de Ira Ringold, um menino que tem a altura (física) de Abraham Linclon. Menino pobre, que na Segunda Guerra trabalhou na Marinha, nos portos do Irã. Lá conhece O'Day, que o introduz no tema do comunismo. Na volta, após uma série de trabalhos menores (na hierarquia da divisão social do trabalho) e de experiências no sindicato, ele se tornou um fervoroso comunista, mas que irá conhecer a ascensão social, através do casamento com uma bela e rica atriz, Eve, do cinema mudo. Ela alimentava um mundo de esperanças neste seu quarto casamento, certamente o mais infeliz de todos. O impulsivo Ira se tornou um ator de novelas de rádio, junto com o grupo que mantinha o programa Livres e corajosos. A sua vida passa a ser de simulações. O medo está onipresente. A temida ação de caça aos comunistas por um sem número de organizações. O método é o do medo. E o medo aumentava na medida em que diminuíam as suas convicções. Eve tinha uma filha, Silphid, uma harpista profissional. O pai de Silphid, um dos maridos de Eve, era um ator de cinema, homossexual, que mais vivia na França, atrás de aventuras amorosas de sua manifesta preferência.

Com os desentendimentos no casamento se agravando, Eve reuniu em uma grande festa, tanto a esquerda quanto a direita. Entre os da direita está a família Grant. Lembrando que estes tempos eram de alta espionagem e de rápidas promoções e premiações com as denúncias de comunistas ou supostos comunistas. Circulavam abundantemente as famosas listas negras (Lembram do filme - Trumbo). Eve é orientada pela família Grant para se vingar de Iron Finn, o mesmo Ira Ringold, após a sua ascensão social. Eve escreve o livro, Me casei com um comunista, sucesso imediato de público e que pôs a carreira do marido num zero absoluto.

Bem, esta é a história. Ela é contada por Natham Zuckerman, que por sua vez a recebeu de Murray Ringold, o irmão mais velho de Ira, que também servira o exército no período da grande guerra. Ele era um professor de literatura no ensino médio, também perseguido e afastado de sala pelo macarthismo. Natham fora aluno de Murray. O entremear de relações travadas entre esses personagens, às vezes, complicam o denso desenrolar do enredo. Os personagens das obras trágicas de Shakespeare estão presentes ao longo de todo o livro, envoltos entre amor e ódio, paixões e traições, delações e até arrependimentos suplicantes. A fragilidade do ser humano perpassa os oito capítulos do livro. O pressuposto básico é o de que, na terra da liberdade e das oportunidades, do patriotismo e da meritocracia, não se admite a traição da pregação comunista. Uma questão de valores. Uma questão de moral. Selecionei dois trechos. O primeiro sobre a história do mundo como traição. Está no último parágrafo do quinto capítulo:

"A gente adquire o hábito da melancolia ao ser traído. É a traição que provoca isso. Pense só nas tragédias. O que suscita a melancolia, a fúria, a carnificina? Otelo, traído. Hamlet traído. Lear traído. Pode-se até alegar que Macbeth foi traído - por si mesmo - embora isso não seja a mesma coisa. Profissionais que consumiram suas energias ensinando as obras-primas, os poucos de nós ainda dedicados à forma como a literatura investiga as coisas, não têm desculpa para encontrar traição em nenhum outro lugar senão no coração da história. A história de alto a baixo. A história do mundo, a história da família, a história pessoal. É um tema muito vasto, a traição. Pense só na Bíblia. Sobre o que é o livro? A situação narrativa da Bíblia é a traição. Adão traído. Esaú, traído. Moisés, traído. Sansão, traído. Samuel, traído. Davi, traído. Urias, traído. Jó, traído por quem? Por ninguém menos que Deus. E não esqueça a traição de Deus. Deus traído.Traído a todo instante por nossos ancestrais".

O segundo trecho, um parágrafo de descrição do macarthismo, encontrado já no começo do capítulo oitavo: "O negócio de McCarthy, na verdade, nunca foi a perseguição de comunistas; se ninguém sabia, disse, ele sabia. A virtude dos julgamentos-espetáculo da cruzada patriótica de McCarthy era simplesmente a sua forma teatralizada. Ter câmaras votadas para aquilo apenas lhe conferia a falsa autenticidade da vida real. McCarthy compreendeu melhor do que qualquer americano anterior a ele que as pessoas cujo trabalho era legislar podiam fazer muito mais em benefício de si mesmas se representassem um espetáculo; McCarthy compreendeu o valor do entretenimento da desgraça e aprendeu como alimentar as delícias da paranoia. Ele nos levou de volta ao século XVII e a nossos antepassados. Foi assim que o país começou: a desgraça moral como entretenimento público. McCarthy era um empresário dos espetáculos e, quanto mais desvairados os pontos de vista, tanto mais ofensivas as acusações, maior a desorientação e melhor a diversão para todo mundo. Os livres e corajosos de Joe McCarthy, este era o espetáculo em que meu irmão ia representar o papel mais importante de sua vida".



4 comentários:

  1. Excelente. Além de nos dar um panorama do romance, estabelece os liames com o mundo que vivemos, em que vivemos, sobre que vivemos. Afinal, ler literatura é uma foma de compreender, com as categorias que a ficção nos dá, o mundo em que estamos. Talvez seja da característica da arte: operando com um mundo que não é, nos fornece elementos de compreensão do mundo que é.

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  2. Muito obrigado Wanderley. O seu comentário significa ânimo novo para sempre continuar lendo, escrevendo e compartilhando.

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  3. Grato por mais um instrutivo artigo !

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