quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Minuano. Tabajara Ruas. Os Lanceiros Negros.

O meu primeiro contato com Tabajara Ruas foi pelos três volumes de Os varões assinalados - o grande romance da guerra dos farrapos. Este contato foi magnífico. Agora vi um comentário sobre Minuano. Este comentário falava que o tema do livro envolvia o triste, possivelmente o mais triste episódio de toda a violentíssima história do Rio Grande do Sul, o dos Lanceiros Negros. A leitura deste livro fez crescer, e muito, o conceito deste escritor, seguramente no pantheon de nossos grandes escritores.
O humano/cavalo - Centauro como narrador. Maravilhoso.

Vejam só o comentário que ele recebeu do Luís Fernando Veríssimo, uma verdadeira condecoração: "Tabajara Ruas é um escritor com um sentido de épico nas pequenas coisas e de humano no épico". Esta condecoração figura na orelha do livro, onde também se lê este fabuloso comentário: "Transitando entre as paisagens monumentais do sul do Brasil (Isso é para quem conhece os chamados - Campos de Cima da Serra - dos Aparados da Serra - Itaimbezinho e Fortaleza), participando de momentos históricos marcantes e carregando o estandarte da negritude por justiça e reparação, Minuano é uma narrativa de elegante delicadeza - e acompanhará o leitor para sempre. E ponha delicadeza e elegância nisso!

E, me permitam e me perdoem, recorrer ao já pronto nesta resenha. É por que é muito bem feita: "Djinga não tinha cavalo. Mulher no Corpo de Lanceiros não tinha cavalo. Mulher, nos exércitos daqueles tempos, só servia para fazer comida, lavar roupa e ajudar a montar e desmontar o acampamento. Mas a imponente Djinga impunha sua autoridade. Era a única que conseguia um cavalo para se deslocar nas marchas, se bem que o sargento chegasse e a obrigasse a desmontar. Cavalo é para homem, desmonta daí, ele rugia e tomava o cavalo de Djinga. Isso aconteceu muitas vezes, tanto que ele começou a achar graça com a insistência de Djinga. Ela era uma garota muito magra, só nervos e músculos, mais alta que qualquer homem e com um rosto redondo, de menina travessa, que escondia a dureza que subitamente assomava aos olhos, quando era contrariada. Estranheza também causavam as marcas em sua testa, marcas tribais feitas com objeto de ponta, com algum significado ignoto para todos os que a conheciam e talvez também para ela. Um dia o sargento disse, Djinga, fica com esse para ti, o manquinho, tu e ele vão ajudar a distribuir água para os soldados. Djinga me olhou com raiva".

Bem, o cavalo manquinho é Minuano, o narrador da história. Será ele o portador do humano, que talvez já tenha desaparecido entre os humanos. Minuano é muito mais do que um cavalo. Ele é um centauro. Ele é um cavalo manquinho porque em sua infância sofreu o ataque do leão baio, mas foi socorrido em tempo pelo pai. Sofreu o preconceito entre os homens, mas não entre os de sua espécie. Pelo contrário, isso lhe mereceu maiores atenções. O manquinho Minuano chegou a servir de montaria para  Bento Gonçalves, lhe prestando um grande serviço, que mereceu, inclusive, elogios do comandante.

A história é desenvolvida em três etapas: o cenário, a guerra e o episódio dos lanceiros. É um livro profundamente poético e humano. Um livro para se apaixonar pela leitura. Se estivesse em sala de aula, no ensino médio, não teria dúvida em adotá-lo para uma leitura e tenho a convicção absoluta de que agradaria. Mas tem que fazer isso antes da aprovação dessa tal da BNCC, que simplesmente acaba com o Ensino Médio.  Escolho alguns trechos que assinalei:

Sobre a chegada da primavera: "Então, uma manhã bem cedo, eu aspirei um perfume de seiva, floral, que a brisa trazia do bosque de araucárias, e percebi que o canto dos galos tinha uma entonação de sinfonia e foi aí que eu soube que era a Primavera entrando outra vez no mundo. Eu sempre quis saber de onde vem a Primavera e porque ela fica tanto tempo escondida. Mesmo dentro do estábulo, eu sabia que era Primavera, e saí um pouco mais feliz, um pouco mais leve, cheio de vontade de saltar e fazer coisas bobas, que é mais ou menos como a Primavera deixa a gente...". Foi aí que apareceu Bento Gonçalves.

Sobre preconceitos contra o Minuano manco e o trote ao ritmo da milonga. Bento rebate a uma consideração desairosa: "Esse cavalinho, senhores, é dos mais valentes e nobres que eu já conheci e não é porque tem um pequeno problema na perna que que pode ser desfeitado impunemente. No meio do susto de que eu estava tomado, minha alma ficou leve. O bolicheiro se dirigiu, aflito ao barbudo: seu Antunes, por favor, reconsidere a situação, esse senhor não fez nada demais, só se defendeu da desfeita. O barbudo olhou para a faca cintilando na mão do general, avaliou a firmeza de tarumã da mão morena. Parece que houve por bem reconsiderar, pois gaguejou um pouco: não quis fazer desfeita a ninguém, só fiz uma brincadeira, eu é que fui ofendido, chamado de ignorante. O general pensou um pouco e disse se o senhor afirma que foi uma brincadeira, eu aceito. Prontamente, o bolicheiro colocou a garrafa de canha no balcão e disse muito bem, senhores, assim falam homens inteligentes, este trago agora é por conta da casa. O clima relaxou, o silêncio foi embora, o general comeu sua linguiça pausadamente, saboreando cada mordida. Eu sentia por dentro uma alegria cor da ametista que o general levava no bolsinho do colete, saí dali com o peito estufado, num trote de milonga bem pontuada". Milonga bem pontuada!

Sobre a Revolução Farroupilha ou sobre qualquer guerra: "Dizem que essa guerra foi por causa do imposto sobre o charque. Não acredito numa coisa tão ridícula. Escutei muitos discursos falando em república e abolição, a maioria pura lorota, mas nunca ouvi nenhum político de cartola e colarinho alto ou um desses oficiais cheios de medalhas encherem o peito e conclamar os soldados a morrer lutando contra o imposto sobre o charque. Precisa ser muito idiota para ir morrer por uma coisa dessas. Não existe heroísmo nenhum na guerra, só dor e desespero. Encontrei muitos pobres soldados carregados de medalhas com fitinhas coloridas e os ouvidos entupidos de discursos empolados, mas faltando um pedaço da perna ou um olho, ou sem os dois braços e a maioria deles com a alma cheia  de enormes buracos escuros. A guerra, e peço licença para dizer isso bem claro, a guerra é uma bosta. Só idiotas vão para a guerra". Lembrem que Minuano é o narrador.

E para não encompridar demais, o episódio final dos lanceiros negros, já desarmados pelo novo chefe Farroupilha, Davi Canabarro: "Saímos dali sem fazer ruído nenhum e deslizamos para o acampamento, onde entramos dando gritos de alerta, mas deu para ver que nossa intenção foi em vão, porque, na noite escura, uma sombra maior cresceu e avançou sobre nós, engolindo as barracas e os currais improvisados e aquilo monstruoso era o exército inteiro de Cabeça de Moringue e seu arsenal de morte. Vinham de todos os lados. Eram mais de dois mil e o Corpo não tinha mais de trezentos lanceiros. Procurei pela Moura e os dois potrinhos e me juntei a eles. Fatumbi comandou a defesa ao lado de Gavião, mas não havia o que defender. Estávamos totalmente cercados e o único jeito de tentar manter a vida era romper o cerco e foi isso que fizemos como alucinados. Eu e Djinga e a Moura e Fatumbi e o Gavião e os dois potrinhos e o grosso do sargento e mais uns quarenta guerreiros conseguimos escapar de alguma maneira. Não sei como. Nenhum de nós sabe como. Em farrapos. Sangrando. Brandindo as armas, despejando os revólveres, atropelando com as lanças. Corremos desesperadamente. Rompemos o maldito cerco. Infiltramo-nos no bosque próximo. Não paramos de correr. Gritando. Chorando. Odiando. Até cair exaustos. E dormir. Dormir profundamente. O que aconteceu naquela noite de massacre em Porongos se resume a duas palavras: Infâmia e horror".

Lembrando que a Revolução Farroupilha terminou em 1845 e a libertação dos escravos ocorreria apenas em 1888. A República do Piratini havia abolido a escravidão. Como incluir esta cláusula nos tratados de paz com o império? O massacre de Porongos foi a cláusula não escrita dos tratados de paz.

Incluo no post duas músicas regionais. Uma mostrando a estreita ligação entre o gaúcho e seu cavalo e outra sobre as medalhas e as cicatrizes de batalhas:

Florêncio Guerra e seu cavalo - a perfeita imagem do centauro: https://www.youtube.com/watch?v=u1Yr-YzquSc  

e Sabe Moço. No meu peito em vez de medalhas - cicatrizes de batalhas. https://www.youtube.com/watch?time_continue=9&v=vCYhcKKn-eY 

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