sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Um homem sem profissão. Oswald de Andrade.

Ao ler Oswald de Andrade - biografia, de Maria Augusta Fonseca  http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/05/oswald-de-andrade-biografia-maria.html, passei a me interessar mais de perto pela leitura de sua obra. Foi agora que fiz a primeira, com Um homem sem profissão, o livro de suas memórias. Este livro se ocupa essencialmente dos anos de sua infância e juventude. Termina no ano de 1918, não entrando, portanto, nas questões da Semana da Arte Moderna, nem mesmo nos seus preparativos. Os seus romances, já neste período, fazem do livro também uma história de amor.
Oswald tinha muito para contar. Um dos melhores livros de memórias que eu já li.

Oswald (Oswáld, por favor, jamais Ôswald) de Andrade (1890 - 1954) é filho de tradicional família, com passagem da era patriarcal rural para a industrial e urbana. Estas memórias são um registro vivo da história da região central de São Paulo, passando pela Sé, Praça da República, Teatro Municipal, Barão de Itapetininga, Caetano de Campos, Colégio dos maristas, Mosteiro de São Bento, Consolação e pela Faculdade de Direito São Francisco. A questão imobiliária fez a fortuna e a ruína da família. Os agiotas!

Das memórias da infância o grande destaque vai para a origem da composição familiar. Muita tradição, tanto pelo lado paterno, quanto pelo materno. Em comum, a presença da fé católica, que Oswald manteve a seu modo. O órfico. Manteve sempre um mística e muitas visitas aos centros de romaria populares, como Aparecida e Pirapora. Também o culto aos santos era um forte da família. Podemos, sem dúvida, afirmar que ele foi educado dentro de uma fé absolutamente ingênua. 

Mas é a educação que ganha as melhores páginas deste menino, que desde muito cedo aspira liberdade e rebeldia. Passa pelos mais variados colégios, inclusive por uma educação em casa. Destaquei algumas passagens. A primeira quando sai do colégio para estudar em casa: "Sozinho num gabinete silente, eu me sentia muito melhor e mais feliz do que no meio da canzoada do colégio, nos seus recreios poeirentos e ruidosos, nas suas aulas pálidas e inexistentes". Aulas pálidas, que horror! Outra tristeza: "Não sei dizer como me alfabetizei. Sei que tive um professor de desenho que nada me ensinou". Conta também de suas leituras. Castro Alves e um livro muito presente nesta época, a incendiar imaginações, Carlos Magno e os doze pares de França.

Uma das descrições deste período de formação escolar é bem marcante: "No quarto ano, produziu-se a crise esperada. Encontrei pela minha frente um professor teutônico, pré-nazista de peito emproado, purista e autoritário. [...] Chamava-se Carlos Augusto Germano Knuppell e era produto da Faculdade de Direito, de que fazia os mais elevados elogios. Para ele, ser bacharel pela escola do Largo de São Francisco traduzia um incalculável penhor de saber e de caráter".  O pai de Oswald teve um caso judicial em que ele era o advogado contrário. Isso bastou para que Oswald sofresse ameaças: "Vi-me logo condenado a repetir o quarto ano, ameaça que ele fez abertamente em classe. E agora vem o inusitado da história.

"Prevalecia na época a decoreba. Oswald decorara os portos brasileiros em ordem alfabética. Assim no Pará os portos eram: Alenquer, Bragança, Breves,  Cametá, Cintra, Curupá etc. Mas a pergunta da prova oral veio fora de ordem. Os portos brasileiros de segunda ordem, a partir do Rio Grande do Sul. Oswald foi respondendo: Torres, Florianópolis, Iguape, Cananeia, São Sebastião, Ubatuba, Paraty e Rio de Janeiro. Aí veio a alegria da galhofa do professor:

- Rio de Janeiro! A Capital da República, porto de segunda ordem! Vou expulsá-lo da banca!
Mais morto do que vivo, eu respondi:
- Desci para ir de barca a Niterói!
O estrépito da classe atingiu o delírio. Vermelho, 'Knuppell' gesticulava:
- Ponha-se daqui"!

Eis o desfecho: "Acabara o exame e um monte de meninos acumulou-se ante a porta fechada, onde se produzia a classificação das notas. Eu me acoitara a um canto, sem nenhuma esperança. A porta abriu-se, leram-se os nomes, o meu vinha no fim. Eu tinha sido aprovado, simplesmente, grau 1. 'Contra o voto do professor da cadeira'". Triste espetáculo!

A leitura de A Relíquia, de Eça de Queirós, lhe provocou a primeira crise religiosa. E as leituras continuaram por Nietzsche e Dostoiévski. Ganhou de presente as obras completas de Anatole France. Ingressa na Faculdade de Direito da Faculdade de São Francisco e empreende a primeira viagem para a Europa onde ocorre o famoso choque de costumes. Lhe fala alto a liberdade sexual e a contrapõe com a moral de um país sob a marca da repressão e do ressentimento, de um país em que não há divórcio. Começam as suas aventuras amorosas, Kamiá....

Na volta, a decepção, a morte sua mãe, que lhe fora ocultada. Chega a tempo para a missa de sétimo dia. Perdeu a sua ancoragem. Questões morais (Kamiá x Landa) e financeiras o distanciam do pai. Seus amores são vividos com muita intensidade e paixão mas são acompanhados também de muito sofrimento. Ele termina este primeiro e único volume de memórias num trágico lamento:

Sinto-me só, perdido numa imensa noite de orfandade. A amada que me deu a vida partiu sem me dizer adeus.
A francesa que trouxe de Paris veio buscar o dinheiro para outro homem.
Landa, que foi o primeiro sonho vivo que me ofuscou, tornou-se a estátua de sal da lenda bíblica. Olhou para o passado.
Isadora Duncan estrondou como um raio e passou. E a que encontrei enfim, para ser toda minha, meu ciúme matou... Estou só e a vida custa a reflorir. Estou só.
Uma bela biografia de um grande biografado.


Restaria falar sobre a faculdade de Direito de São Francisco. Mas isso eu faço em outro post. Esta sua relação me causou forte impressão. E fico com uma imagem que me foi passada pela leitura de  Maria Augusta Fonseca. Em vida Oswald dera muitas festas. Em seu velório tinha menos gente do que na festa menos concorrida que ele deu em vida.

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