quarta-feira, 29 de junho de 2022

Luís Gama (1830- 1882). Mãe negra - pai fidalgo. Livre, escravizado e abolicionista.

 Entre as vozes negras na luta pela abolição, seguramente, é a voz de Luís Gama que tem a história de vida mais singular. Uma história de cinema (que aliás, já existe. O Dr. Gama). Uma lenda. Ele nasceu livre, foi vendido pelo próprio pai para um traficante de escravos, alfabetizou-se junto a um amigo e, na qualidade de autodidata, ganhou notoriedade de intelectual respeitado. Como rábula ajudou na alforria de mais de 500 escravizados. A sua pena era temida e respeitada. Fundou e atuou na Loja Maçônica - América - da qual também foram membros Ruy Barbosa e Joaquim Nabuco. Na imprensa, a ironia, a sátira e o deboche sempre foram suas armas. Teria sido um novo Gregório de Matos?

Luís Gama (1830-1882). Um abolicionista radical. Sentiu na pele as dores da escravização.

No Brasil, pouco se sabe de Luís Gama. E, muito do que se sabe, se deve a Lígia Fonseca Ferreira. Na Sorbonne, em Paris, ela, mulher negra, fez seu doutorado. O tema de seus estudos foi a literatura negra no Brasil nos anos de 1887-1888. Foi então que ela entrou em contato com o autor e não mais o abandonou. Foi ela que descobriu a carta que ele enviara a Lúcio Mendonça, atendendo a um pedido deste. Lúcio Mendonça foi um dos idealizadores e fundadores da Academia Brasileira de Letras. A carta é autobiográfica e tinha finalidades de publicação. E isso foi feito. A pesquisadora encontrou os originais, que hoje estão sob custódia da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

Ela revela o teor e as polêmicas que envolvem a carta. De Lígia tomo as informações que prestarei, também auxiliado por Eduardo Nunomura, um estudioso de Lígia.  Lígia nos conta que Luís Gama nasceu em Salvador no ano de 1830, filho de mãe negra-africana e pai português, fidalgo. Nascera, portanto, livre. O pai, depois de arruinado, o vendeu como escravo para um traficante amigo, que não o conseguiu revender, ficando com ele. Nesta condição ele chega a São Paulo, onde permanecerá por 42 anos, até a sua morte, em 1882. Na abertura de seu texto, Lígia nos apresenta o único abolicionista que sofreu na sua própria pele as dores da escravidão. 

A sua obra se resume às Primeiras Trovas Burlesca de Getulino. Seus versos são os de um negro que denuncia os paradoxos políticos, éticos e morais da sociedade imperial. E, haja paradoxos. O seu sonho era - um Brasil americano, sem reis e sem escravos. Estão aí as duas grandes bandeiras de sua vida. Por elas fez versos, escreveu nos jornais e militou nos tribunais. Foi o advogado dos escravizados. Era autodidata, não tinha diplomas. Os desdenhava. "A inteligência repele os diplomas como Deus repele a escravidão", dizia, numa frase de efeito. Um de seus versos, Quem sou eu, verso das Primeiras trovas e a carta ao amigo, são as fontes para o estudo de sua biografia. Depois dessas considerações a pesquisadora apresenta o conteúdo, as características e os interesses deste documento.

Lúcio Mendonça é um amigo de Luiz Gama, mais novo e muito influente. Tinha interesse em divulgar o que lhe seria revelado. Ela, a carta, é resultado de uma solicitação. Portanto, consentiu ao escrevê-la. Biografias eram uma moda da época. Eles tinham muitas afinidades. Eram intelectuais, republicanos e abolicionistas. Ambos são fundadores do Partido Republicano (Itu - 1873). Luís Gama logo se afastará do Partido, pois nele haviam ingressado fazendeiros paulistas escravocratas. Eram as lavouras de café! Era considerado o terror dos fazendeiros, de advogados e de juízes corruptos. Era, ao mesmo tempo amado, odiado e temido. Ao tempo da carta, já era portador de uma saúde frágil, acometido de diabetes que logo, logo, dois anos após a carta, o vitimaria. 

O ponto de partida da carta é o seu nascimento e infância. Nasce em Salvador em meio as agitações das rebeliões negras da década de 1830-1840. Se apresenta como um típico brasileiro, fruto de um casamento entre Portugal e a África. Da mãe se diz herdeiro de uma indômita personalidade, que lhe permitiu enfrentar as idiossincrasias políticas de impiedosos tratamentos, reservados aos negros. Dá detalhes do nascimento, 21 de junho de 1830. Batizado, aos oito anos, na igreja matriz do Sacramento, de Itaparica. Filho natural de negra-africana livre, da Costa Mina (Nagô de nação), de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusara o batismo e a fé cristã. A descreve como altiva, geniosa, insofrida e vingativa. Era laboriosa e ganhava a vida como quitandeira. Várias vezes foi presa, por envolvimento em rebeliões. Ela veio ao Rio de Janeiro, onde ele a procurou por três vezes. Por informações, soube de sua prisão e desaparecimento, provavelmente pelo exílio, pena aplicada aos negros amotinados.

Do pai, de quem se recusa dar o nome, também dá informações. Era um português, fidalgo e muito rico. Era extremoso e o criara em seus braços. Era apaixonado por caça e pesca, por cavalos e armas. Amava prodigamente súcias e divertimentos, esbanjando fortuna. Reduzido à extrema pobreza (1840) o vendeu ao amigo e hospedeiro Luiz Cândido Quintela. Estes relatos permitem especulações e lendas, conta a pesquisadora, especialmente com relação à mãe, alçada à condição de revolucionária e heroína.

Em 1848 empreende fuga e consegue reaver a liberdade. Se torna amigo de Lúcio Mendonça, para quem, em sua carta, omite dados, certamente, por supô-los sabidos. É o momento em que começa a sua vida ativa, especialmente a partir de 1860, com a sua vida pública de antimonarquista e antiescravista, com a sua escrita nos jornais e a sua voz nos tribunais. As Primeiras Trovas são do ano de 1859. A sua atividade lhe rendeu muitas perseguições. "Detesto o cativeiro e os senhores, especialmente o reis", bradava. Nos tribunais, com base na Lei de 1831, acordada com os ingleses, que aboliu o tráfico, ele alforriou mais de 500 escravizados.

Apresenta também as metamorfoses em sua vida. De criança livre  a escrava; de escravo a homem livre; de analfabeto a  homem de letras; de não cidadão a homo politicus e do anonimato à notoriedade. No campo das atividades passou de escravo doméstico a soldado, ordenança, copista, secretário, tipógrafo, jornalista, advogado e autoridade maçônica. E o inacreditável, de um ex escravizado a homem famoso, ainda mais, na então inexpressiva São Paulo, pouco dada à ascensão social. E o mais bonito, de posse da escrita, vedada aos escravos, rompe os laços da dominação, alcança a autonomia, se torna cidadão e voz influente na pólis, na comunidade das letras e, em suma, na sociedade branca.

A pesquisadora ainda destaca que em menos de duas mil palavras, que falam por si só, conquistou a imagem de sensível, decidido, pronto para o sacrifício e para o perdão. Além de mostrar-se seguro, modesto, intransigente, justiceiro, racional e portador de grande coragem moral. Levou uma vida de transgressões; da fuga e do aprender a ler e escrever, e o tornar-se figura pública incomum. Casou-se com Claudina Furtado Sampaio, com que já tivera um filho, nascido junto às Trovas. E exclama, "Oh! eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires". E encerra, "Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para ti, que me estimas deveras".

E, como não poderia deixar de ser, deixamos aqui o seu verso autobiográfico famoso. Quem sou eu? (A bodarrada). O livro das Primeiras trovas também foi organizado pela pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira.

Quem sou eu? que importa quem? 

Sou um trovador proscrito,

Que trago na fronte escrito

Esta palavra - "Ninguém".

Augusto Emílio Zaluar. Dores e Flores.


Amo o pobre, deixo o rico,

Vivo como o tico tico;

Não me envolvo em torvelinho,

Vivo só no meu cantinho:

Da grandeza sempre longe

Como vive o pobre monge.

Tenho mui poucos amigos,

Porém bons, que são antigos,

Fujo sempre à hipocrisia,

à sandice, à fidalguia;

Anjo Bento, antes trovões.

Faço versos, não sou vate,

Digo muito disparate,

Mas só rendo obediência

À virtude, à inteligência:

Eis aqui o Getulino

Que no plectro anda mofino.

Sei que é louco e que é pateta

Quem se mete a ser poeta;

Que no século das luzes,

Os birbantes mais lapuzes,

Compram negros e comendas,

Tem brasões, não - das calendas

E, com tretas e com furtos

Vão subindo a passos curtos; 

Fazem grossa pepineira,

Só pela arte do Vieira,

E com jeito e proteções,

Galgam altas posições!

Mas eu sempre vigiando

Nessa súcia vou malhando

Com semblante festival.

Dou de rijo no pedante

De pílulas fabricante,

Que blasona arte divina,

Com sulfatos de quinina,

Trabujanas, xaropadas

E mil outras patacoadas,

Que sem pingo de rubor, Diz a todos que é DOUTOR!

Não tolero magistrado, que do brio descuidado,

Vende a lei, trai a justiça,

- Faz a todos injustiça -

Com rigor deprime o pobre 

Presta abrigo ao rico, ao nobre,

E só acha horrendo o crime

No mendigo que deprime.

- Neste dou com dupla força.

Té que a manha perca ou torça.

Fujo às léguas do lojista,

Do beato e do sacrista -

Crocodilos disfarçados,

Que se fazem muito honrados

Mas que, tendo ocasião,

São mais feros que o Leão.

Fujo ao cego lisonjeiro,

Que, qual ramo de salgueiro,

Maleável, sem firmeza,

Vive à lei da natureza;

Que conforme sopra o vento

Dá mil voltas num momento.

O que sou, e como penso,

Aqui vai com todo o senso,

Posto que já vejo irados

Muitos lorpas enfunados,

Vomitando maldições,

Contra as minhas reflexões.

Eu bem sei que sou qual Grilo,

De maçante e mau estilo;

E que os homens poderosos

Desta arenga receosos

Hão de chamar-me de tarelo,

Bode, negro, Mongibelo;

Porém eu que não me abalo,

Vou tangendo o meu badalo

Com repinque impertinente

Pondo a trote muita gente.

Se negro sou, ou sou bode

Pouco importa. O que isto pode?

Bodes há de toda casta,

Pois que a espécie é vasta...

Há cinzentos, há rajados,

Baios, pampas e malhados,

Bodes negros, bodes brancos

E, sejamos todos francos,

Uns plebeus, e outros nobres,

Bodes ricos, bodes pobres

Bodes sábios, importantes,

E também alguns tratantes...

Aqui, nesta boa terra,

Marram todos, tudo berra;

Nobres Condes e Duquesas,

Ricas Damas e Marquesas

Deputados, senadores,

Gentis homens, veadores;

De nobrezas empantufadas,

Repimpados principotes,

Orgulhosos fidalgotes,

Frades, Bispos, Cardeais,

Fanfarrões imperiais,

Gentes pobres, nobres gentes,

Em todos há meus parentes 

Entre a brava militança -

Fulge e brilha alta bodança; 

Guardas, Cabos, Furrieis,

Brigadeiros, Coroneis,

Destemidos Marechais,

Rutilantes Generais,

Capitães-de-mar-e-guerra,

- Tudo marra, tudo berra -

Na suprema eternidade,

Onde habita a Divindade,

Bodes há santificados

Que por nós são adorados.

Entre o coro dos Anjinhos

Também há muitos bodinhos. -

O amante de Siringa

Tinha pelo e má catinga:

O deus Mendes, pelas costas,

Na cabeça tinha pontas;

Jove quando foi menino,

Chupitou leite caprino;

E, segundo o antigo mito,

Também Fauno foi cabrito.

Nos domínios de Plutão,

Nos lundus e nas modinhas

São cantadas as bodinhas;

Pois se todos tem rabicho -,

Para que tanto capricho?

Haja paz, haja alegria,

Folgue e brinque a bodaria;

Cesse pois a matinada, 

Porque tudo é bodarrada! -.

Creio que estes versos se constituem numa bela síntese do que são os versos das Primeiras trovas burlescas de Getulino. Ele não tolerava mesmo, os inúmeros Cresos, presentes na sociedade paulista, com que conviveu. Quando vi que Luiz Gama pertenceu a mesma Loja Maçônica que Joaquim Nabuco, a questão me intrigou. Por que um não faz referência ao outro em seus textos? A pesquisadora responde, apontando as diferenças entre eles. Nabuco de Araújo, o pai de Joaquim, fora presidente da Província de São Paulo. Fora, portanto, um homem do Império. Óbvio que haveria incompatibilidades. Além disso, Luiz Gama defendia a rebelião popular escrava, a sua insurreição. Já Joaquim Nabuco apostava na via parlamentar, na abolição empreendida pela ação do Estado, somando-se à abolição, uma série de reformas sociais que garantiriam a integração numa sociedade, que mais adiante, Florestan Fernandes definiria como sociedade de classes, de sociedade competitiva, em seu livro A integração do negro na sociedade de classes.

O que Luiz Gama e Joaquim Nabuco tinham em comum era a crença nos princípios políticos do Iluminismo, do Esclarecimento. A crença de que todos os homens seriam tratados com liberdade, Igualdade e Fraternidade. 

Referências: O texto de Lígia Fonseca Ferreira.A referência é: Lígia Fonseca Ferreira, "Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio Mendonça". In Teresa, Revista de Literatura Brasileira da USP. [n. 8/9], São Paulo, p.300-321.

As Primeiras Trovas Burlescas são encontradas no  Portal Domínio Público.

Já o artigo de Eduardo Nunemura está na revista Pesquisa FAPESP, 219, Humanidades - História, de maio de 2014, páginas 72-75.

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