quinta-feira, 20 de março de 2014

a máquina de fazer espanhóis. valter hugo mãe.

Já devem ter estranhado as minúsculas no título deste post. Não é erro meu, não. É a maneira que Valter Hugo Mãe encontrou para homenagear a igualdade e eliminar a hierarquia entre as palavras, dividindo-as em maiúsculas e minúsculas. Esta forma de escrever ele usou em seus primeiros quatro romances, que formam a tetralogia que percorre a vida humana, em seus diversos momentos, desde a infância até a velhice. o nosso reino (2004), o remorso de baltazar serapião (2006), o apocalipse dos trabalhadores (2008) e a máquina de fazer espanhois (2010). Este último retrata a velhice.

Depois desta tetralogia ele voltou a escrever normalmente, isto é, com maiúsculas e minúsculas. Ainda, depois desta tetralogia escreveu, O filho de mil homens, possivelmente o seu mais bonito livro, embora, pelo visto, o autor não goste de classificações. Vi-o pessoalmente, explicando no programa Roda Viva, da TV Cultura, do dia 6 de janeiro de 2014, explicando que pós ter escrito a máquina de fazer espanhois,  ele sentiu a necessidade de escrever algo que levantasse o seu próprio astral. E o fez de forma magnífica. O filho de mil homens é um encontro constatante com o outro, que vai completando o ser humano e lhe dando novos significados.
A edição portuguesa de a máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe. Comprei este livro numa das mais belas livrarias do mundo, a Lello, na cidade do Porto.

Ler Valter Hugo Mãe é tarefa para leitores, como nos adverte António Lobo Antunes, na contracapa da edição portuguesa do livro. "A maior parte dos livros são escritos para o público; este é um livro escrito para os leitores". Os seus livros são uma provocação permanente para a reflexão, para os problemas existenciais do ser humano. Não são propriamente livros que contam uma história. São livros em que o autor usa a imaginação, criando personagens incríveis, profundamente humanos, mas que também deixam aberturas para que o leitor faça complementos com a sua própria imaginação.

a máquina de fazer espanhois é um livro sobre a velhice. António Jorge da Silva, o seu personagem principal, após a morte de Dona Laura, a sua esposa e companheira por 48 anos, com 84 anos, vai para o Feliz Idade, viver a disciplina destrutiva da morte. No Feliz Idade, convive com outras 92 pessoas, procurando ainda, encontrar um sentido para a sua vida. O número 93 é praticamente um número fixo, tal é a rapidez da substituição das pessoas ao morrerem. Existem no Feliz Idade dois pavilhões distintos, um voltado para os jardins e outro para o cemitério. Todos sabiam qual era o significado de trocar de pavilhão. António Jorge da Silva, o Silva chega ao Feliz Idade, absolutamente casmurro.
Foto do escritor português, Valter Hugo Mãe, nascido em Angola. Um dos maiores nomes da literatura portuguesa.

O encontro que tem logo após a morte de Dona Laura, é com outro Silva, Cristiano Mendes da Silva, o Silva da Europa, este com "o peito inchado de orgulho como se tivesse conquistado tudo sozinho". Os Silvas mantem um interessante primeiro diálogo: "somos todos silvas neste país, quase todos. crescemos por aí como mato, é o que é, como os silvas. somos silvestres, disse eu, obrigado a sorrir já como quem suplica uma trégua. exactamente, concordou, assim do mato, grassando pelo terreno fora com cara de gente, mas muito agrestes, sem educação nenhuma". A essa observação o Silva retrucou que eram todas pessoas educadas, ao que o Silva da Europa contrapôs o tipo de educação, "mas a educação tem sido apertada neste país, à paulada [...] e ele insistiu, já no limite, mas somos bons homens, podemos acreditar no que quisermos, seremos sempre bons homens, nós os portugueses, somos mesmo, ponha isso na sua cabeça, colega silva,". 
E a conversa continua:

"E a mim ninguém me apanha diminuído como outrora, somos europeus, eu sou um silva da europa, isso é que ainda há muitos que não o são, só porque ainda não o aceitaram ou não o perceberam. mas, sabe o que lhe digo, é inevitável. vai chegar a todos. é tempo, é tempo. um dia seremos cidadãos de um mesmo mundo. iguais, todos iguais e felizes nem que seja por obrigação".

Esta é uma bela introdução, encontrada já no primeiro capítulo, que tem como tema "o fascismo dos bons homens". O romance, ou o livro foi escrito em 1910, mas ele retrocede no tempo, na história de Portugal e na alma portuguesa. Retrocede aos tempos de  ditadura, que passou a régua sobre os indivíduos, tornando a todos bons cidadãos e vai até o Silva da Europa, aos tempos da União Europeia. Passa pelos temas da política, do futebol com as rivalidades entre o Benfica e o Porto, da educação, da família e de seus problemas, das doenças e, acima de tudo, como o tema é a velhice, por ainda encontrar um sentido para a vida, que aos 84 anos se prepara disciplinadamente para a morte, evidentemente, com a ajuda da virgem de Fátima.
Cosac Naify
Capa da edição brasileira de a máquina de fazer espanhois, da Cosacnaify.

O passo mais bem sucedido nesta busca é o encontro com o seu Esteves, o homem sem metafísica, que completou cem anos, para depois morrer. A última noite de seu Esteves, passada com seu Silva, é das páginas mais belas do livro. Duas pessoas a se confortarem. O jogo do homem sem metafísica, tirada de Tabacaria de Álvaro de Campos, está presente em toda a obra, para dizer, essencialmente, que a ditadura é a máquina que rouba a metafísica dos homens. 

Evidentemente que o grande tema de um livro sobre a velhice tenha como tema constante a morte, embora a vida sempre apresente grandes expectativas, mesmo, segundos antes de morrer, quando ocorre a grande retrospectiva da consciência, num fugaz turbilhão da memória. As últimas palavras se referem à transcendência, ou seria sobre a metafísica? "só acredito nos homens. e espero que um dia se arrependam. bastava-me isso, que um dia genuinamente se arrependessem e mudassem de conduta para que fosse possível acreditarem uns nos outros também. mais do que isso, sinto apenas angústia".

Uma última palavra sobre o título a máquina de fazer espanhóis. Talvez o título seja mais compreensivo para os portugueses. Portugal é a grande máquina de fazer espanhóis, talvez por estarem inconformados com o isolamento de Portugal, na ponta da península e num sonho de serem cidadãos do mundo e que isso talvez fosse mais fácil se Portugal nunca tivesse se separado da Espanha. O capítulo 17 tem por título, o próprio título do livro e é o mais curto de todos e a frase mais explícita é esta: "Ó senhor, ainda há disto? Estávamos bem era a falar castelhano, com salários castelhanos e uma princesa bonita para as revistas. Que filha da mãe de erro este de proclamarem soberania nos arremedos de uma península!" A frase foi dita por um inspetor português e em resposta a um espanhol, que se considerava português, para se ver livre da ditadura de Franco.

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