quarta-feira, 12 de março de 2014

Angústia. Graciliano Ramos.


Eu estou bem. Não se preocupem comigo. Terminei de ler Angústa, de Graciliano Ramos, uma história de autopunição. Tormentos da consciência. Como o Graciliano sabia fazer bem isso. Lembre-se do dia mais sombrio que você já teve e, nem de longe, você estará perto daquilo que Graciliano apresenta como tormentos da consciência. Já em São Bernardo os ciúmes atormentam Paulo Honório, mas agora, em Angústia, ele se supera. O personagem Luís da Silva, o narrador, consegue aplicar à sua consciência tormentos inigualáveis de sofrimento sem par. Li o livro em duas etapas. Consenti um intervalo, que julguei  extremamente necessário.

Graciliano Ramos. A bela edição da Record.

Já no início do livro o grande tema de que se ocupa fica explícito. De imediato transparece um ódio mortal para com dois personagens: contra Marina, a pessoa de seus amores e, contra Julião Tavares, aproveitador e que lhe rouba a esperança de sua vida, embora, ao que tudo indica, ela jamais o faria feliz. Em linguagem atualizada, diríamos que ela era apaixonada mesmo, pelo cartão de crédito de seu Luís. Mas o de Julião Tavares era mais consistente. O livro expressa a imaginação enraivecida de um ser humano ingênuo, porém apaixonado.

Um dilema me acompanha ao longo da vida. "Vá direto à leitura, interprete você mesmo", me dizem uns, enquanto outros me aconselham buscar interpretações de especialistas. Tive dificuldades em ler o livro. Depois vi a crítica de Antônio Cândido, que considerava Angústia, "um livro excessivo" e me conformei em ter encontrado essa dificuldade. Muito me ficou esclarecido a partir da leitura do comentário do posfácio, escrito por Silviano Santiago. Raras vezes li um texto tão esclarecedor. Em 12 páginas atinge uma profundidade inigualável. Me convenci que Angústia é realmente um livro muito singular, único em toda a literatura brasileira. Não é por nada que atribuem ao velho Graça comparações como o Dostoievski do sertão ou o Tolstoi brasileiro. Silviano faz comparações de técnicas usadas no cinema, que Graciliano teria usado para escrever a sua obra.

Capa de Angústia, em sua primeira edição, pela José Olympio. 1936.

O livro faz duas retrospectivas históricas. Uma da memória recente, em torno de um ano e meio, da atormentada vida do narrador na cidade Maceió, e outra que reconstroi a sua infância, com as atribulações da vida que levara no sertão. O coronel da vida política e familiar o faz abandonar o campo e lhe provoca o desestruturamento e o desenraizamento na vida urbana. A constituição das relações sociais na vida humana é muito pobre. Se reduz a um número mínimo de pessoas, ligadas ao seu mundo de trabalho e ao círculo de suas vizinhanças. Tanto na primeira retrospectiva, quanto na segunda Luís da Silva sempre fora um exímio observador.

Luís até que vivia bem como funcionário público, especialmente, se comparado à miséria ao redor. A vinda para a cidade era para operar verdadeiras transformações revolucionárias. A sua tormenta, no entanto, começa quando conhece Marina, frívola e fútil, até pelas palavras do pai dela. Estas características eram bem visíveis, mas quem domina os seus sentimentos. O ódio para com Marina se estabelece através de um outro personagem, Julião Tavares, um playboy, também em linguagem atualizada. Um rico parasita, a infelicitar meninas pobres, mas sonhadoras. Uma tragédia está anunciada. Uma corda entra e permanece em cena, até a perpetração do crime. Luís da Silva enforca Julião Tavares. Aí começa uma nova história no livro, a da autopunição, a tortura do remorso, a tortura da consciência.
Uma das últimas fotos de Graciliano Ramos em vida.

Não é um livro linear. As memórias se entrecruzam permanentemente, sendo tudo sempre canalizado para a angústia dos desencontros da vida real, de um passado distante, agravado no tempo presente. A felicidade que não conseguiu dar a Madalena, é representada por um bilhete de loteria. Quem quiser arriscar, o número é 16.384. Ele não conseguiu. A sua impotência perante a realidade está assim expressa: "Escrevo, invento mentiras sem dificuldade. Mas as minhas mãos são fracas, e nunca realizo o que imagino". É o livro mais pessimista do camarada Graciliano.

As quatro últimas palavras de Angústia são reveladoras: "Um colchão de paina". Se o mundo tivesse dado as condições de materialidade ao sonho de Luís, ele teria dado a Marina "um colchão de paina", mas a absoluta irracionalidade da organização econômica do mundo impediu que este sonho se realizasse. Paina é uma fibra semelhante ao algodão, oriundo da paineira. Em linguagem do sul, seria o tradicional colchão de palha de milho, no qual eu dormia na minha infância. Convenhamos que não era muito. Sonhar. Mas este luxo se complementava: "Marina dormiria num colchão de paina. E quando saltasse da cama, pisaria num tapete felpudo que lhe acariciaria os pés descalços".
A magnífica biografia de homem profundamente angustiado.

Silviano ainda traça paralelos entre Angústia (1936) e os outros romances tenentistas, como ele chama os romances que na década de 1930, retratam a vida de jovens que abandonaram a vida rural em busca da vida desenraizada das cidades emergentes. Os outros livros são: O Amanuense Belmiro (1937) de Cyro dos Anjos  e Caminhos Cruzados (1935) de Érico Veríssimo. Os três jovens vivenciaram esta realidade, trocando o interior por Maceió, Belo Horizonte e Porto Alegre, respectivamente.

A transformação da sociedade também passaria pelos conceitos da estética, preocupação permanente em Graciliano. Em Angústia, Luís da Silva critica a frase de Marx e Engels, que encerra o Manifesto, por ela estar gravada sem vírgula e sem traço: Proletários Uni vos em vez de Proletários, uni-vos. Em cada livro, um mundo por descobrir!.



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