segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Em meio a duas tradições, surge a Música Popular Brasileira.

Terminei de ler um livro maravilhoso. Memórias Póstumas de Noel Rosa - Uma longa conversa entre Noel e São Pedro num botequim lá do céu. O livro tem texto de Luciana Sandroni, partituras de Maria Clara Barbosa e ilustrações de Gustavo Duarte e é um lançamento da Companhia das Letrinhas. O livro foi concebido num formato maravilhoso. São Pedro instigando  Noel Rosa para que este escrevesse as suas memórias, deixando de lado, em nome da moral cristã a parte ofensiva à moral e aos bons costumes. Afinal de contas... São Pedro tem as suas responsabilidades. E Noel, por sua vez, aprontou bastante.
Um livro espetacular. Noel conta as suas memórias desde um botequim lá do céu.

Noel só poderia escrever sobre música. Afinal ele nascera no bairro musical de Vila Isabel e em meio a uma família de músicos. O livro narra como eram os saraus de domingo à tarde em sua casa: "Arlinda no Pleyel, (a marca de um piano), Martha no bandolim, tia Carmen no violino, Neca no violão e na voz. Minhas avós, tio Eduardo, Hélio e eu (Noel) formávamos a plateia. Arlinda tocava os clássicos - Chopin e Liszt -, mas se soltava mesmo quando interpretava os nossos compositores: Chiquinha Gonzaga com seu famoso "Corta-jaca"; Ernesto Nazareth com "Odeon", "Brejeiro" e tantas outras. Na hora das canções, meu pai cantava músicas do Catulo da Paixão Cearense".

Como dá para perceber, duas eram as origens das músicas tocadas ou cantadas na época. Ou o clássico ou a que veio do nordeste. O primeiro grupo a que Noel pertenceu foi "Os Tangarás", que cantavam música nordestina, caprichando, inclusive, no sotaque. Mas Noel não se identificava muito. Ele queria cantar uma música nova, que vinha do morro de São Carlos, da primeira escola de samba, de Ismael Silva e Bide, que faziam um samba diferente "mais marcado, mais ritmado". Ismael e Bide "foram os primeiros a usar a cuíca, o surdo e o tamborim no samba, marcando bem o ritmo, e isso fazia toda a diferença".  Queria cantar também a sua cidade, a vida real, o bonde, a falta de dinheiro, o malandro e, a sua vila, a querida Vila Isabel. E assim passou a compor o seu primeiro samba. Era um samba muito diferente. A música do povo negro, embora todos os preconceitos, irá dar origem a autêntica Música Popular Brasileira.
O livro traz muitas ilustrações. Elas são de Gustavo Duarte.

Mas vamos dar voz a quem entende. Maria Clara Barbosa, responsável pelas partituras das músicas faz uma apresentação da música de Noel. Achei muito interessante. Ela abre o texto falando das duas tradições musicais existentes no Rio de Janeiro, em princípios do século XX: "A linhagem europeia englobava a música clássica e, no seu ramo popular, as polcas, as mazurcas, valsas, modinha e tangos. Esses gêneros [...] estavam presentes nos teatros e nas casas de família". "Paralelamente , em alguns bairros boêmios, assim como nos morros e subúrbios, a linhagem africana, com os batuques originários de Angola, começava a incorporar as formas melódicas e harmônicas dos gêneros europeus, dando origem ao lundu, ao maxixe e ao samba".
O mundo da música. Noel largou até do curso de medicina para se dedicar só à música.

Maria Clara, conta mais: "Com isso, os instrumentos de sopro dos ranchos, o bandolim e o violão vêm se juntar às vozes e aos atabaques para criar um novo som, que as rádios e os discos se encarregavam de divulgar". Conta ainda que em 1917 foi gravado o primeiro samba "Pelo Telefone", de Donga, ainda bastante influenciado pelo maxixe e acrescenta: "Esse ritmo sincopado depois se desenvolve em uma versão urbana que era a música dos negros do Rio de Janeiro vinda dos morros, dos subúrbios e, especialmente, das festas na casa de Tia Ciata, mãe de santo e partideira que fez da Praça Onze o berço do novo gênero musical que ficou conhecido como samba carioca". Continua depois falando do carnaval carioca da década de 1920 e da música nordestina, para ali encontrar Noel Rosa e falar de toda a sua influência sobre o samba.

Mostra Noel nas rodas de samba do bairro do Estácio de Sá, onde foi criado o bloco carnavalesco Deixa Falar, que é considerada como a primeira escola de samba e destaca as suas maiores qualidades: "A vivacidade rítmica e a qualidade melódica das criações de Noel Rosa já lhe garantiram um lugar de destaque no nosso cancioneiro popular. Mas foi nas letras que se revelou toda a sua genialidade, ao ir muito além dos tradicionais lamentos de amor para abarcar temas da atualidade social e política - às vezes com um humor realmente cáustico". E se derrama em elogios ao traçar um paralelo com Chico Buarque de Holanda:
26 anos bastaram para que Noel se transformasse num dos maiores nomes da MPB.

"Alguns de seus sambas são verdadeiras crônicas de costume, tendo influenciado autores como Chico Buarque, com o qual divide a extraordinária façanha de modificar antigas formas musicais para expressar seu sentimento poético". Felizmente nessa época já tínhamos atingido a era da reprodução fonográfica e a sua obra está integralmente preservada. Deixo ainda um último registro, voltando ao texto de Luciana Sandroni, quando São Pedro conta a Noel o que aconteceu após a sua morte, só para registrar a sua grande aceitação, superando a condição de raça. Isso já anos de 1950:  " - Aracy de Almeida estava no auge da carreira e fez um show na boate Vogue, em Copacabana; a boemia, nessa época , foi para a zona sul. E o que ela cantava? "Três apitos", "Com que roupa", "Conversa de botequim", "Palpite infeliz", "Último desejo", e por aí vai. O público grã-fino se encantou com suas músicas, e Aracy gravou um álbum triplo com suas composições".












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