quarta-feira, 8 de julho de 2015

Três tipos de razão? A razão intelectual, a razão cordial e a razão espiritual.

Construo este texto a partir de algumas frases de um parágrafo retirado do livro do teólogo Leonardo Boff, Francisco de Assis e Francisco de Roma - Uma nova primavera na Igreja. Estas frases dizem o seguinte: "Será essa aliança de paz e de sinergia entre ser humano e natureza, entre tecnociência e Mãe Terra que permitirá o surgimento de um novo modo de habitar a única Casa Comum que temos, a Terra. Será o triunfo do paradigma do cuidado em oposição ao paradigma da dominação, a vitória do coração sensível sobre a mente fria e conquistadora. Precisamos das três inteligências: a intelectual, a cordial e a espiritual, para vivermos como humanos. Juntas, poderão nos devolver a sensatez e o amor indispensável para com tudo o que existe e vive" (página 75-6). Me permitirei uma liberdade, igualando o sentido das palavras razão e inteligência, fazendo a adequação ao título.
O livro do teólogo Leonardo Boff que deu origem a este post.


O teólogo dá algumas explicitações. Na página 99 lemos o seguinte: "Estamos todos impregnados pela razão intelectual, funcional, analítica e eficientista". A partir desta síntese admirável se perfilou em minha mente toda a construção da modernidade. Descartes, David Hume, Kant e, ainda, Lutero. Também os construtores das suas instituições,  Maquiavel, John Locke, Voltaire, Adam Smith, Bentham, Hegel e Marx. É o mundo do Renascimento, do Iluminismo e de suas benéficas consequências políticas e científicas e para a autonomia do indivíduo ou do sujeito, e a desconstrução de um mundo de mitos e dogmas. Kant que o diga, em sua apologia à ilustração.

Mas também me lembrei de Pascal, ainda nos alvores da construção desta modernidade. "O coração tem razões que a própria razão desconhece". Depois rememorei as marcas de sua fragilidade com Schopenhauer e Nietzsche, com a sua insuficiência em Freud e o inconsciente e  as violentas críticas de Adorno, da racionalidade técnica e instrumental, em sua Dialética do Esclarecimento. Mas também lembrei do mundo do nihilismo e do indivíduo, como o fim do sujeito, e da concepção de sociedade como uma mera soma de indivíduos. Sem antes ter passado por uma profunda crise existencial.
Para o teólogo, o homem em sua totalidade precisa somar as razões intelectual, cordial e espiritual.

O teólogo continua, na página 111. "Hoje entendemos que precisamos resgatar, urgentemente, a razão cordial e sensível para enriquecer a razão intelectual. Só com a razão intelectual, sem a razão cordial, não vamos sentir o grito dos pobres, da Terra, das florestas e das águas. Sem a razão cordial não nos movemos para ir ao encontro dos que gritam e sofrem para socorrê-los, oferecer-lhes um ombro e salvá-los. Da razão cordial nasce a ética, aquele conjunto de valores que orientam nossa vida". Antes já nos fazia a advertência:

"Toda modernidade se construiu quase que exclusivamente sobre a inteligência intelectual; ela nos trouxe incontáveis comodidades. Mas não nos fez mais integrados e felizes porque colocou em segundo plano ou até recalcou a inteligência emocional ou cordial e negou cidadania à inteligência espiritual" (página 74-5). Por inteligência espiritual creio que poderíamos incluir tudo aquilo que nos relaciona com a transcendência.
 A contracapa do livro que traça o paralelo entre os Franciscos, o de Assis e o bispo de Roma.

Este texto é o que eu chamaria de um texto aberto, um texto para a provocação, para a abertura do diálogo, diálogo este, sempre na sua bela perspectiva de busca e não na afirmação de certezas e verdades. O teólogo faz uma referência sobre a abertura para o diálogo, na página 154. "O relevante mesmo é a capacidade de ambos (portadores de diferentes doutrinas) estarem abertos à escuta mútua. Para dizê-lo na linguagem do grande poeta espanhol Antonio Machado: 'Não a tua verdade. A verdade. Venha comigo buscá-la. A tua guarde-a para ti.' Mais importante que saber é nunca perder a capacidade de aprender. este é o sentido do diálogo". Que o digam Sócrates e Paulo Freire, ou ainda, Guimarães Rosa.

Qual é o contexto em que estou elaborando este texto? O da perspectiva do livro de Leonardo Boff, de que, ao inverno, sucede a primavera. Que o papa Francisco rompeu com a Igreja imperial, medieval e autoritária, inspirada no direito divino e na infalibilidade, para uma visão de busca de saídas sob a inspiração direta de Cristo e não na tradição da Igreja em ruínas, que o outro Francisco, o de Assis, recebera por revelação divina. "Francisco, vai e reconstroi a minha Igreja que está em ruínas".

Para encerrar quero ainda deixar registrada a posição dogmática do Papa João Paulo II, na crítica ao mundo moderno na sua mais importante encíclica Memória e identidade. (Editora Objetiva, 2005) Já no capítulo 2 ele fala das ideologias do mal, buscando as suas origens e as apontando como responsáveis pelo nazismo e comunismo, mas não pelas mazelas do capitalismo. Descartes é apontado como o grande culpado. É um dos textos mais explícitos e herméticos que eu conheço e que, por isso mesmo, estava levando a Igreja para o passado e não apontado para o futuro. Vejamos:
A encíclica de João Paulo II. Memória e Identidade.

"A fim de ilustrar melhor este fenômeno, é preciso remontar ao período anterior ao Iluminismo, sobretudo à revolução operada no pensamento filosófico por Descartes. Aquele seu "cogito, ergo sum, - penso logo existo" desencadeou uma reviravolta no modo de fazer filosofia: no período pré-cartesiano, a filosofia - e por conseguinte o cogito ou melhor, o cognosco - estava subordinada ao esse, era visto como primordial. Aos olhos de Descartes, por sua vez o esse aparecia secundário, enquanto ele considerava primordial, o cogito; deste modo realizava-se não só uma mudança de direção no filosofar, mas decididamente abandonava-se o que tinha sido até então a filosofia e, mais concretamente, a filosofia de Santo Tomás de Aquino: a filosofia do esse. Antes, tudo era interpretado na perspectiva do esse e procurava-se uma explicação de tudo dentro desta ótica: Deus, Ser plenamente auto-suficiente (Ens subsistens), era considerado o suporte indispensável para todo o ens non subsistens, ens participatum, isto é, para todos os seres criados e, por conseguinte, também para o homem. O cogito, ergo sum implicava uma ruptura com essa linha de pensamento: agora tornava-se primordial o ens cogitans, depois de Descartes, a filosofia torna-se uma ciência puramente de pensamento: tudo o que for esse - tanto o mundo criado como o Criador - permanece no campo do cogito como conteúdo do conhecimento humano. A filosofia ocupa-se dos seres enquanto conteúdos do conhecimento, e não como existentes fora dele" (página 19).

Que lamento! Lamento de perda de poder e de autoridade, mas acima de tudo, situa a importância de Descartes na construção do pensamento e do mundo moderno, que na voz de João Paulo II, depois de Descartes, tudo virou relativismo. Creio que este texto também nos mostra o porquê de tantos católicos conservadores  se apegarem tanto a esta concepção de fonte de autoridade.  Encerro por aí, citando ainda, Leonardo Boff  quando este fala da receptividade de Francisco como o bispo de Roma: "Já se fazem ouvir vozes dos mais radicais que pedem, para o 'bem da Igreja (a deles obviamente) orações nesse teor: 'Senhor, ilumine-o ou elimine-o'". E,como falamos de relativismo, parece que o Espírito Santo, efetivamente, ilumina de diferentes maneiras.

2 comentários:

  1. O poder corrompe, assim como a perspectiva de o possuir.

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  2. E como a igreja foi instrumento de poder! O poder da inquisição e o poder do medo. Agradeço o seu comentário, Almeida da História.

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