terça-feira, 28 de julho de 2015

Chica que manda. A vida de Chica da Silva - contada por Agripa Vasconcelos.

Quando visito uma cidade sempre busco uma livraria local. Busco livros que contem da história da cidade. Em Diamantina não foi diferente. Já na primeira saída, numa das primeiras ladeiras encontramos uma bela livraria, onde junto funcionava um bar e café. Questão de sobrevivência. Diamantina, embora com menos de 50.000 habitantes é uma cidade universitária. No momento não nos interessavam os livros. Estávamos a procura de um restaurante com música ao vivo. Posteriormente voltei para os livros e comprei dois. Chica que manda, de Agripa Vasconcelos e Arraial do Tijuco - Cidade Diamantina, de Aires da Mata Machado Filho.
Um belo livro. Chica que manda, sobre Chica da Silva. A autoria é de Agripa Vasconcelos.

Chica da Silva sempre me inspirou muita curiosidade, mesmo mal sabendo que ela era uma escrava poderosa. Também me lembrava vagamente do filme em que ela foi representada por Zezé Motta. Agora estava a frente de um romance  histórico de rara beleza e marcante conteúdo.Nunca tinha ouvido falar de Agripa Vasconcelos, o seu fabuloso autor. A obra é editada pela Itatiaia, de Belo Horizonte. A edição que comprei é de 2010. Agripa é escritor mineiro de Matosinhos, nascido em 1900 e falecido em 1969. Foi médico de profissão. Como escritor misturou fantasia e realidade das Minas Gerais, em seus períodos colonial e imperial. O livro integra uma coleção de seis livros, que leva por título Sagas do país das gerais.
Arraial do Tijuco - Cidade diamantina. Mais história da bela cidade.

Os livros são apresentados na contracapa, da seguinte maneira: Fome em Canaã - Romance do ciclo do latifúndio nas Gerais; A vida em flor de Dona Bêja - Romance do ciclo de povoamento das Gerais; Sinhá Braba (D. Joaquina do Pompéu) - Romance do ciclo da agropecuária das Gerais; Congo Sôco (O barão de Catas Altas) -  Romance do ciclo do ouro nas Gerais; Chica que manda (Chica da Silva) - Romance do ciclo dos diamantes nas Gerais e Chico-Rei Romance do ciclo da escravidão nas Gerais. Está aí, pronto um projeto para um curso sobre as origens históricas das Minas Gerais. E que projeto!
Chica da Silva era uma mulata, pai branco e a mãe escrava negra. Por ironia, daria para dizer que isso era um fato raro nas Gerais. Mas, nesta condição, era uma escrava. Pertencia a um senhor que de maneira nenhuma queria se desfazer dela. A sua verdadeira história começa quando chega ao Arraial do Tijuco o novo contratador de Diamantes, João Fernandes. Foi amor à primeira vista. Tomou a moleca de seu proprietário por um dinheiro absurdo, mas mesmo assim, o antigo proprietário não queria se desfazer dela. Razões sentimentais? Falou mais alto o poder. Assim como foi amor à primeira vista também foi amor por toda a vida.
Durante a Vesperata, o casal Chica da Silva e João Fernandes circula entre o povo.

Mas quais eram os encantos da escrava que tanto satisfaziam o seu amo e amante. É difícil de contar. Mas é óbvio que a sexualidade esteve presente, mas o fato é que ia para muito além dela. Um jeito de ser, uma forte determinação, coragem nas decisões, sempre altiva, fidalguia extrema e rápida adaptação aos costumes das cortes reais europeias, ensinada por damas lisboetas. A sua prodigalidade e hospitalidade encantava a todos. A riqueza de João Fernandes se encarregava de suas vestimentas caras, de seu corpo sempre perfumado e coberto das mais finas joias. Ricos jantares, bailes com banda de música e apresentações de teatro eram a diversão de seletos convidados.

"Tendo-lhe manifestado a amante o desejo de conhecer um navio - ela que, nascida escrava no Distrito Diamantino, jamais arredara os pés das Gerais, - não hesitou o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira em mandar construir gigantesca represa e, nas suas águas, por a flutuar uma nau verdadeira, réplica das que haviam feito a glória de Portugal". Esta é a história símbolo do seu querer e poder. O casal tornou-se muito querido pela população e os controles portugueses, sob o comando do contratador, não eram os mais rígidos, em função da alta produtividade das minas. "Se apanhavam diamantes como jabuticabas", se lê no livro.
A casa de Chica da Silva, em Diamantina.


O romance é longo e 17 capítulos são distribuídos ao longo de 408 páginas. A narrativa é muito rica, iniciando pelo encontro dos diamantes no início do século XVIII, o pouco valor a eles atribuídos no início e a chegada febril dos caçadores de diamantes, depois de descoberto o seu valor, com a avaliação de lapidadores holandeses. É um rico passar pela história, pelos reis portugueses, D. João V, D. José I e o terrível e temido marquês de Pombal e de D. Maria I. Também é muito rica a descrição de todo o processo da extração dos diamantes e os terríveis castigos impostos aos escravos, além das adversidades dos bichos e das serpentes. As inquisições portuguesas sempre produziram sangue e, nunca provas ou verdades.
A representação da luxúria. Quadro na casa de Chica da Silva.


O temor de Portugal com a insubordinação da colônia foi terrível e também foi o motivo pelo qual o contratador foi chamado de volta a Portugal, afastando-o das Gerias e de sua paixão e cuja ausência, após 12 anos, a leva à morte. João Fernandes era rico e poderoso demais. Pombal o percebera. Esta contextualização histórica é extraordinária. Na surdina lê-se em Tijuco, a Declaração da Independência dos Estados Unidos e é  celebrada a notícia da ocorrência da Tomada da Bastilha.

O grande problema do casal eram os ciúmes doentios de ambos. As vinganças de Chica, contra suspeitas aproximações femininas na vida do contratador, recebiam vinganças absurdamente desproporcionais. As vinganças eram terríveis como deixar comer as carnes dos pés do menino Zezinho por piranhas esfomeadas, apenas por ser irmão de Gracinha e de mandar enterrar a esta, ainda viva, simulando rapto, sem nenhuma confirmação de suspeitas. Os crimes são horrorosos e repetidos. João Fernandes era um pouco mais comedido em suas atrocidades. O povo nunca acreditou que Chica tivesse cometido tais crimes. Com a morte do escravo delator Jaconias todas as provas materiais de seus crimes desaparecem, mas não em sua consciência, em seus pesadelos e delírios finais.
Esta bela ladeira nas proximidades da casa de Chica da Silva.


João Fernandes se tornou o homem mais rico da colônia, ou quem sabe de todo o império. Por isso mesmo foi posto sob terrível vigilância portuguesa e se chegou ao absurdo de mandar, não cercar a cidade com um muro para melhor controlar o contrabando de diamantes, mas fazer uma enorme vala com tal fim, que simbolicamente representa o fosso que impediu o reencontro dos eternos amantes apaixonados, ricos mas infelizes pela impossibilidade de continuarem vivendo a sua grande paixão. João Fernandes e Chica da Silva tiveram vários filhos, 17 no total, mas conforme o romance, nasceram já como flores murchas, sem nenhum brilho. Viveram juntos por mais de 15 anos, entre os anos de 1755 e 1770.

Além da rica e viva descrição da paixão do casal, a obra vale também, pela descrição de usos e costumes da época, pela apresentação da violência que foi a exploração portuguesa na colônia e pela contextualização histórica de um momento de ebulição no mundo, qual seja, a segunda metade do século XVIII.

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