sábado, 4 de julho de 2015

Dom Casmurro. Machado de Assis.

"Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. [...] Se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca. E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve". (Capítulo CXLVIII, o final).
Dom Casmurro, possivelmente seja a obra prima de Machado de Assis.

Raras vezes tive tamanho prazer com a releitura de um livro, como com Dom Casmurro. A sua intensidade dramática, especialmente, em sua parte final, eleva o escritor brasileiro aos patamares mais elevados da literatura mundial. A descrição dos sentimentos de Bentinho, as suas oscilações entre o querer bem e mal, são uma das mais vivas descrições da psique de um ser humano. "E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção..." (CXXXC). Estas são como que constatações finais e definitivas de Bentinho, a respeito de sua amada e de sua possível traição, ou dos seus ciúmes injustificados, ao sair da ópera Otelo, de Shakespeare.

Seria  Dom Casmurro uma continuidade da descrição dos sentimentos humanos em torno do amor e da traição, ou apenas da dúvida da traição, tão vivamente agitados pelo vil Iago, com relação ao amor entre Otelo e Desdêmona e agora estendidos até Bentinho e Capitu? Quem sofrera mais? Otelo ou Bentinho, ou então, pelo lado feminino, Capitu ou Desdêmona? Seria o ciúme o mais intolerável e incontrolável dos sentimentos humanos? Afinal de contas, Houve a traição de Capitu, ou este sentimento era uma mera imaginação de uma mente doentia?
Mais uma vez recorri a minha velha coleção de Os Imortais da literatura universal.

Se Machado com a sua obra quis provocar a ambiguidade, ele a conseguiu. Há mais de um século, a obra foi lançada em 1890, o mundo se debruça sobre esta questão e, a ambiguidade permanece. As discussões são acaloradas. Existem as provas da traição? Duas, em particular são apontadas como mais explícitas. A primeira e a maior é uma prova da natureza, a imensa semelhança física, de Ezequiel, o filho do pai duvidoso. "Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cauteloso, e não fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa. Conheceu-me pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem companheiro do seminário de São José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. [...] Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai" (CXLIV). Assim Bentinho marca o reencontro com Ezequiel, o seu filho, ou dele, após seu retorno da Europa. O nome Ezequiel era uma homenagem ao Escobar, o Ezequiel Escobar.

A segunda prova, já não tão explícita, seria o comportamento de Capitu ante o cadáver de Escobar. Um comportamento contido, como quem deve dominar a situação e a emoção. Não obstante, algumas lágrimas ficaram incontidas. Da desconfiança de Bentinho para consigo próprio também poderia sair outro indício. Os casais Bentinho e Capitu e Escobar e Sancha se tinham aproximado muito, tanto assim, que até morar foram, bem próximos.  Um envergonhado Bentinho narra que teve desejos com relação a Sancha. Será que o mesmo não poderia ter ocorrido também com Escobar, com relação a Capitu? E, convenhamos, Escobar era mais audacioso. Tomava iniciativas.
Edição da LPM, série ouro. Assim que eu gosto. Apresentações e notas explicativas.

Mas a sutileza maior acompanha a obra já desde a sua primeira página, ou melhor, desde o título. Por que Bentinho, o narrador de suas memórias e, principal protagonista, virara casmurro? Quem era ele, afinal de contas? Quem era Capitu, ou Capitolina? Apesar de um nome nada bonito, ela, pela descrição do narrador, deveria ser a menina dos sonhos de qualquer rapaz de sua idade. Quem primeiro chama a atenção sobre a moça foi o José Dias, o agregado que gostava de superlativos. "Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada" (XXV). Um pouco mais adiante o narrador lhe dedica um capítulo inteiro, o XXXI, onde se lê:

"Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda  o não disse, aí fica. Se disse fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição. Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, algumas úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas, gostava de saber tudo". E, mais adiante, no mesmo capítulo: "Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar". Me fez lembrar certa semelhança com a menina Ema, a futura Madame Bovary, também muito curiosa, esperta e voraz leitora e, a leitura, a provocar a imaginação...
Depois dos principais romances, os contos machadianos.

E a insinuação de José Dias sobre os olhos de Capitu, o acompanhavam, tanto assim que quis constatar pessoalmente se eram "oblíquos e dissimulados", mesmo não sabendo, ainda, o significado de dissimulação. Nesta constatação lhe arranca o primeiro e inesquecível beijo, por iniciativa dela. Efetivamente Capitu era mais mulher, que Bentinho homem. Já que falamos de Capitu vamos também falar um pouco de Bentinho, o prometido.

Dona Maria da Glória tivera um primeiro filho que morrera. Se tivesse um segundo, este seria consagrado a Deus, ou ao seu ofício. Seria padre, por força do destino, com ou sem vocação. Dona Maria da Glória cedo ficara viúva, uma viúva rica, herdeira de casas e fazendas. Em sua casa, no Engenho Novo, vivia também tio Cosme e a prima Justina. O mais que faziam era deixar o tempo correr. Ninguém tomava grandes iniciativas e também não havia grandes preocupações. Por estas influências talvez, Capitu era mais mulher do que Bentinho homem.

Vamos ainda marcar um terceiro personagem. Ezequiel de Sousa Escobar, ou o Escobar. Era o melhor amigo de Bentinho no seminário. Ambos não tinham vocação. O motivo de Bentinho, já o sabemos, era Capitu. A vocação de Escobar era o comércio (In hoc signo vinces). Pelo jeito gostava de dinheiro. Aproximou-se de Dona Glória, e esta lhe financiou os empreendimentos comerciais. Houve insinuações de outras aproximações. Hoje diríamos que era um homem imbuído de um espírito empreendedor.
Neste long play existe uma explicação para "olhos oblíquos e dissimulados".

Tenho aqui em casa uma preciosidade rara. Trata-se de um long-play de um grupo folclórico gaúcho, há muito desfeito, Os Muripás. Nele existe a declamação de um poema sob o título de Pealo de Cucharra, de autoria de J. M. Leal e Jesus Almeida. Neste poema existe um verso que diz assim: "China com brilho no olhar, tem fogo no recavém". Acho que este verso explica bem o que são os "olhos oblíquos e dissimulados". Mas sem estes olhos... voltemos ao capítulo final..., parece não haver sedução. Me permitam uma divagação, ou melhor, uma digressão. Eu tenho um amigo, o Giovani, que mora em Dourados, que declama de cor e salteado este poema. A sua maior proeza foi tê-lo declamado para o grande educador Paulo Freire. Desculpem se fui chulo ou ajudei a propagar uma frase machista, usando a palavra recavém, mas é mais uma constatação de que o ser humano é atemporal e universal. E... Dom Casmurro..., mais uma obra do realismo machadiano.

Além das dúvidas deixadas pela ambiguidade intencional do narrador, deixo três tarefas para os meus poucos leitores. Ir ao dicionário, afinal, é um belo hábito, para procurar o significado de Casmurro, de comborço e de recavém, esta última, necessitando de um dicionário do regionalismo gaúcho.

Um adendo que se impõe.  24 de agosto de 2023. Também é sobre o olhar. Quem fala é João Ubaldo Ribeiro, em Viva o povo brasileiro. É um diálogo entre Stalin José e o livreiro falido Acúrcio Bastos. Os tempos são os da ditadura militar. Stalin José conta de suas desventuras:

"Eu sei como é Dom Casmurro - dissera de repente, e o velho fez uma cara de quem não entendeu. - Não, essa cena, essa cena que a gente estava comentando, essa cena com Escobar morto e o olhar de Capitu para ele. Eu sei como é esse olhar, eu senti isso. Eu vi o olhar de minha mulher para outro homem, não existe nada mais terrível do que isso, não existe nada pior do que esse olhar que a mulher que a gente ama lança a outro homem, porque é a coisa mais verdadeira, a mais involuntária, a mais inegável, a mais indiscutível e, no entanto, a mais intangível. Porque é só um instante, às vezes uma fração de segundo, nada pode ser provado, nada pode ser discutido e aquilo que existiu tão visivelmente, tão poderosamente, passa como um relâmpago no meio de uma conversa e é sujeito a toda dúvida, menos a dúvida da dona do olhar e a de quem ele feriu" (Páginas 633-634).

Contextualizando: Stalin José conta de seu amor por Jandira, até o dia em que teve seu maxilar rachado e uma prisão de sete meses. Coisas da ditadura militar. Ao sair, imaginou uma vida de herói. Mas... "Até que houve o primeiro olhar"... Depois desse... houve compaixão, não mais amor. A descrição só é possível com toda a sensibilidade própria de João Ubaldo Ribeiro. 


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