quinta-feira, 5 de outubro de 2017

O cemitério dos vivos. Lima Barreto.

Antes de efetivamente falar de O cemitério dos vivos, vamos falar um pouco sobre o Lima Barreto, sobre a sua formação. Apesar de sua origem humilde, uma série de influências o fizeram ser um homem de uma formação esmerada, a melhor que se poderia imaginar. Passou pelos estudos preparatórios e ingressou, como se diria hoje, na faculdade de engenharia, da qual, segundo ele, felizmente desistiu.

Os seus desencontros na vida e com a vida, em grande parte, decorreram dessa sua formação e o fato de não encontrar uma ocupação que realmente contemplasse este seu nível de formação. Exerceu uma função burocrática e rotineira no Ministério do Exército. Na literatura teve pouco reconhecimento, embora escrevesse muito. Por artigos em jornais e revistas procurou tornar-se conhecido, mas isso em muito pouco o ajudou. A tudo isso se aliou uma insegurança extrema diante das dificuldades da vida, entre elas, as questões financeiras que sempre o atormentaram. Tudo isso o levou ao álcool, muito álcool, e aos delírios por ele causados e a dois internamentos em hospício, ao qual chegou, segundo ele próprio, da pior maneira possível, pelas mãos da polícia. No hospício ele teve uma certeza mais do que absoluta: a de que ele não era um louco.
Os dois livros de memória de Lima Barreto.  Acima de tudo, grande contribuição para os estudos da psiquiatria.

Nestas condições ele escreveu dois livros notáveis. O primeiro, Diário do hospício, é um livro de memórias e um mínimo de ficção. É uma descrição valiosa destas suas desventuras, em dois internamentos. O segundo, O cemitério dos vivos é mais notável. Nele, se não fosse conhecida a sua biografia, já não se distinguiria entre a realidade e a ficção. As descrições são acompanhadas de profundas e lúcidas reflexões. Estabelece relações com Dostoiévski, com as Memórias da casa dos mortos e com os sofrimentos e impactos de Cervantes em sua prisão em Argel. Este livro deveria ser leitura obrigatória para todos os estudantes de medicina que se dedicam à neurologia e à psiquiatria. São observações de uma pessoa com a mais alta e elevada formação possível e em absoluto estado de lucidez, observando o tratamento que ele e os demais receberam, naquilo que se chama de um tratamento para a loucura.

O próprio Lima conta sobre os objetivos deste seu livro: "Essa narração, porém, não tem por fim indicar medidas de administração; quero contar simplesmente as impressões da minha sociedade com os loucos, as minhas conversas com eles e o que esse transitório comércio me provocou pensar".

O livro está dividido em cinco capítulos. O primeiro é quase pura ficção. Seria o que poderíamos dizer, os anos de formação de Vicente Mascarenhas. A sua timidez, o seu interesse por literatura, os seus projetos e sonhos de ser um escritor reconhecido, o seu casamento e sobre o seu único filho. Chama atenção neste capítulo uma descrição da arrogância da ciência e da pretensão doutoral dos brasileiros, tão presente ao longo de sua obra. Os bruzundangas.

No segundo capítulo ele narra do seu internamento num dia de natal. É submetido a todas as humilhações possíveis a um ser humano. Aí é que se recorda de Dostoiévski e de Cervantes, recolhidos em prisões. Ele não faz distinção entre prisão, hospício e inferno. O seu estado psicológico está assim descrito: "Veio-me, repentinamente, um horror à sociedade e à vida; uma vontade de absoluto aniquilamento, mais do que aquele que a morte traz; um desejo de perecimento total da minha memória na terra; um desespero por ter sonhado e terem me acenado tanto grandeza, e ver agora, de uma hora para outra, sem ter perdido de fato a minha situação, cair tão, tão baixo, que quase me pus a chorar que nem uma criança". 

O capítulo mostra o choque entre seus sonhos de jovem, a sua formação relacionada com a sua origem, proveniente de uma mistura racial, os seus altos sonhos com a literatura, a sua permanente falta de dinheiro, que o levou a bebidas baratas, à cachaça. O seu estado de ânimo está assim descrito: "Tinha trinta e poucos anos, um filho fatalmente analfabeto, uma sogra louca, eu mesmo com uma fama de bêbado, tolerado na repartição que me aborrecia, pobre, eu vi a vida fechada. Moço, eu não podia apelar para minha mocidade; ilustrado, não podia fazer valer a minha ilustração; educado, era tomado por um vagabundo por todo mundo e sofria as maiores humilhações. A vida não me tinha mais sabor e parecia que me abandonava a esperança".

Novas reflexões são trazidas no capítulo terceiro. Desta vez elas atingem o próprio estado da loucura. Quais seriam as suas origens, causas e explicações? Procura desmistificar as absurdas teorias da origem hereditária. Se assim fosse, quem não seria louco, deduz. E a sua reflexão continuava, sobre o ser moral que está no homem: "Eu sofria honestamente por um sofrimento que ninguém podia adivinhar; eu tinha sido humilhado, e estava, a bem dizer, ainda sendo, eu andei sujo e imundo, mas eu sentia que interiormente eu resplandecia de bondade, de sonhos de atingir a verdade, do amor pelos outros, de arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para que os outros fossem mais felizes do que eu, e procurava e sondava os mistérios de nossa natureza moral, uma vontade de descobrir o seu núcleo primitivo de amor e de bondade". Em meio a tudo isso, ele recebe tratamentos um pouco mais humanizados e isso lhe faz renascer as esperanças.

O quarto capítulo trata fundamentalmente das relações que ocorrem no presídio. Lima é observado e ganha um tratamento diferenciado. Ele jamais o reivindicou, especialmente, por sentimentos de culpa, que o aniquilavam. De maneira geral, os funcionários eram portugueses pobres. Descreve, mas pede para não generalizar, um brasileiro, lhe conferindo as qualidade de exibição, mando e autoritarismo. Com ele teve um atrito, dos poucos que teve. Soberba, superioridade e inferioridade nas relações ganham também as suas observações. Considera a falta de solidão um dos piores suplícios do hospício. Sempre tem um louco por perto a incomodar. A hora mais triste é a que está entre o pós jantar e o dormir, quando afloram na memória os tristes episódios da vida.

No quinto capítulo descreve e reflete sobre a sua relação com os médicos. Descreve com atenção especial dois médicos com atitudes opostas. De um teme que lhe aplique os novos inventos da medicina. De outro, exalta as suas qualidades humanas. Da ciência louva o progresso da técnica, mas duvida das ciências médicas, por sua arrogância e o distanciamento na interação do médico com o paciente. Este é tratado como um objeto. Passou por cinco médicos, cada um com as suas peculiaridades. Descreve, ainda as cinco sessões do hospício. Sobra tempo também para uma reflexão sobre a bebida, quando um dos médicos constata que ela não lhe provocara estragos tão grandes. "Eram mínimos", constatou. E aí começa a sua nova reflexão:

"Ela não me matava, ela não me estragava de vez, não me arruinava. De quando em quando, provocava-me alucinações, eu incomodava os outros, metiam-me em casas de saúde ou no Hospício, eu renascia, voltava, e assim levava uma vida insegura, desgostosa, e desgostando os outros, sem realizar plenamente o meu destino, que as coisas obscuras queriam dizer não ser o de um simples bêbado. Era preciso reagir".

Lima Barreto não reagiu. O memorável escritor sucumbiu diante de seus problemas, na jovem idade de 42 anos. Um brasileiro que retratou a si e ao seu país. Um escritor profundamente temperado pelos sofrimentos que a vida impõem, especialmente para aqueles que melhor os compreendem. O cemitério dos vivos é o livro em que Lima Barreto melhor expõe as angústias de sua vida. Profundamente existencial.




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