quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Poema Pedagógico. A. S. Makarenko.

Makarenko ganhou notoriedade a partir de 1920, quando dirigiu instituições educacionais correcionais para crianças e adolescentes abandonados. A Colônia Maxím Gorki, em Poltava (1920-1928) e a Comuna F. M. Dzerjinski, em Khárkov (1927-1935). Estas experiências foram narradas no livro Poema Pedagógico, em três volumes. São experiências do regime socialista soviético num dos campos mais difíceis da educação, que é o da formação de menores infratores. A leitura destes três volumes foi para mim uma das experiências mais impressionantes da minha vida. Lembro-me mais especificamente das questões ligadas à disciplina.
Estes três livros deixaram em mim profundas repercussões.

Na sua abertura tem um diálogo, ou uma conversa, que nunca mais consegui esquecer. A conversa é com o Zavgubnarobraz - chefe do Departamento de Educação da Província. Este diálogo mostra as dificuldades que um educador de verdade, encontrou junto ao regime soviético. Não obstante, o livro é um poema de respeito ao ser humano, àquele ser humano, que muitas vezes, ou quase sempre não recebe nenhuma atenção. Lembro-me especificamente desta questão, sendo tratada em Jorge Amado em seu fabuloso livro Capitães da Areia. Mas vamos à conversa, ou ao diálogo não muito amistoso.

Em setembro de 1920, o Zavgubnarobraz me convocou à sua presença e disse:

-Olhe aqui, meu caro, ouvi dizer que você anda reclamando à beça... porque eles... do Conselho Econômico da Província... lhe cederam aquele lugar ali... para a sua escola profissional...

-E como é que eu não havia de reclamar? O caso não é só reclamar, é caso de sentar e chorar aos uivos: que espécie de escola profissional é aquilo? Imunda, empesteada de fumo! Então aquilo ali parece uma escola?

-Pois sim, já sei do que é que você gostaria: que construíssem um prédio novo, colocassem carteiras novinhas, aí então você se poria a trabalhar. Não são os prédios que importam, meu caro, o que importa é educar o homem novo, mas vocês, pedagogos, sabotam tudo: é o prédio que não lhes agrada, são as mesas que não lhes servem. O que lhes falta é aquele... o fogo, sabe - aquele... o revolucionário. Janotas, é o que vocês são.
O grande educador Makarenko, autor do Poema Pedagógico( 1888-1939). De óculos...

-Eu até que não sou janota.

-Vá lá, você não é... Intelectuais sarnentos! Eu procuro e procuro, temos uma tarefa tão grande pela frente: proliferam esses vagabundos, moleques abandonados - não se pode mais andar pela rua, até residências eles invadem. E só o que eu ouço é, isto é assunto seu, responsabilidade do Departamento de Educação Pública... E então?

-E então, o quê?

-É isso aí: eles não querem nem saber, com quem quer que eu fale, só recebo recusa redonda - eles vão nos esfaquear, falam. O que vocês querem é um bom escritorinho, seus livrinhos... Olhe só para você, até óculos já botou...

Desatei a rir:

-Ora vejam, agora até meus óculos atrapalham!

-O que eu quero dizer é que vocês só querem saber de leitura, mas se lhes puserem pela frente um ser humano vivo, lá vão vocês: O tal ser humano vivo vai me matar! Intelectuais!

O Zavgubnarobraz me espetava com seus olhinhos negros enfezados, e de sob o bigode nietzschiano, emitia impropérios contra toda  a nossa confraria pedagógica. Só que ele não tinha razão, esse Zavgubnarobraz.

-Mas ouça-me, por favor...

-"Ouça-me, Ouça-me..." Ouvir o quê, para quê. O que é que você pode me dizer? Vai me dizer, ah, se fosse daquele jeito... como na América! Há pouco eu li um livreco a esse respeito, alguém me empurrou. Reformador... ou, como é mesmo, espere... isso mesmo, reformatórios. Pois bem, isso nós ainda não temos.

-Não é isso, o senhor me escute.

-Muito bem, estou escutando.

-Mesmo antes da Revolução já se sabia lidar com esses vagabundos. Já existiam as colônias para delinquentes juvenis.

-Isso não nos serve, sabe... O que foi antes da Revolução não presta para nós.

-Certo. Isso significa que temos de criar o homem novo de maneira nova.

-De maneira nova, isso mesmo, nisso você está certo.

-Mas ninguém sabe de que jeito fazer isso.

-Nem você sabe?

-Nem eu sei.

Pois aqui comigo, sabe... eu tenho uns caras aqui mesmo no Departamento de educação da província que sabem...

-Mas não querem por mãos à obra.

-Não querem, os safados, quanto a isso você acertou.

-Mas se eu começar alguma coisa, eles vão infernizar-me a vida, vão acabar comigo. Faça o que fizer vão dizer que não é nada disso.

-Vão mesmo, os desgraçados, nisso você está certo.

-E o senhor vai acreditar neles e não em mim.

-Não vou acreditar neles, vou dizer-lhes: e por que não começaram vocês mesmos?

-Mas, e se eu de fato meter os pés pelas mãos?

O Zavgubnarobraz deu um murro na mesa:

-Mas que conversa é essa de meter os pés pelas mãos? Meter os pés pelas mãos? Então você vai meter os pés pelas mãos, e daí, ora bolas! O que é que você quer de mim? Acha que eu não compreendo nada, ou o quê? Então faça as suas trapalhadas, meta os pés pelas mãos, mas o trabalho tem de ser feito. Faça e depois veremos. O principal é que, sabe... não se trata de alguma colônia de delinquentes juvenis qualquer, mas, você entende, é a Educação Social... Precisamos de um homem novo assim... um que seja nosso! E você trate de construí-lo. De qualquer jeito, todos tem que aprender, Então você vai aprender, também. Até foi bom você me dizer na cara que não sabe. Pois então está tudo resolvido, e tudo bem.

- Mas existe um lugar? Uns prédios sempre são necessários, apesar de tudo.

-Existe, meu caro. Um lugar e tanto. Exatamente no local onde ficava a antiga colônia de delinquentes juvenis. Não é longe - umas seis verstás (milha russa). É gostoso ali: bosques, campos - dá para criar umas vacas.

Tudo na medida correta, mas quem sabe o que é a medida correta? Um educador maravilhoso.

-E gente?
Vou já, já tirar gente do bolso, para você. Quem sabe vai querer também um automóvel?

-E dinheiro?

-Dinheiro temos. Aqui receba.

-Ele tirou um pacote de notas da gaveta da escrivaninha. - Cento e cinquenta milhões. Isto dá para qualquer tipo de despesa de organização e para alguma mobília de que precise...
-E para as vacas?

-As vacas vão ter que esperar; lá não há nem vidraças. E para o ano você me prepara uma estimativa.

-Mas fica meio esquisito, assim - não seria bom eu dar uma olhada ali, antes?

-Eu já olhei...e daí, acha que você vai enxergar mais do que eu? Vá para lá duma vez e e pronto!

-Pois muito bem - disse eu, aliviado, porque naquele momento nada me parecia mais assustador do que o recinto do Conselho Econômico da Província.

-Assim é que se fala- disse o Zavgubnarobraz. Vá em frente! A causa é sagrada.

Apesar de tudo isso, Makarenko fez um trabalho que foi reconhecido pelo mundo inteiro, apesar desse primeiro capítulo do livro e do título do segundo, O inglório começo da Colônia Górki. Resultados maravilhosos começaram a aparecer.

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